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Letras

Pesquisa da UFU analisa cenas homoeróticas na literatura brasileira

Foram levantados 74 livros publicados desde o século XIX, a maior parte desconhecida pelo público e pouco estudada pela academia

Publicado em 25/01/2019 às 14:45 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:56

 

“- Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!”. Esse trecho do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, publicado em 1890, em que Léonie se declara a Pombinha, é a primeira cena homoerótica da literatura brasileira.

Cinco anos depois, Adolfo Caminha publicaria O Bom-Crioulo, em que Amaro e Aleixo protagonizam o homoerotismo inter-racial em ambiente militar. “Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexo contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas a espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produzi-ra-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia!”

Obras como essas são estudadas na linha Homocultura e Linguagens, coordenada pelo professor Fábio Figueiredo Camargo, dentro do Grupo de Pesquisa sobre Mídias, Literatura e Outras Artes, vinculado ao Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (Ileel/UFU). O projeto “O sexo da palavra: cenas sexuais homoeróticas na prosa brasileira” é desenvolvido desde 2012 e recebe financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Homoerotismo, segundo o Manual de Comunicação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), se refere à “noção flexível para descrever a pluralidade das práticas ou desejos sexuais relacionados aos sujeitos do mesmo sexo/gênero”.

 

Abordagem do homoerotismo é diferente em cada época (Foto: Divulgação)

 

Os pesquisadores da UFU - entre eles, professores, estudantes de graduação e pós-graduação - fizeram o levantamento de 74 livros nacionais, publicados entre os séculos XIX e XXI, e observaram como a abordagem do homoerotismo na literatura foi se modificando a cada época. “Os escritores às vezes estão se colocando como transgressores, às vezes como pessoas mais cuidadosas. Tanto é que você tem desde as cenas muito explícitas até as cenas que são bastante eufemizadas”, explica Camargo.

Nas primeiras obras, O Cortiço e O Bom-Crioulo, ainda no século XIX, os homossexuais são tratados como seres patológicos. “Os personagens são animalizados. Você tem uma ideia de que aquilo é perversão e não a possibilidade de um relacionamento amoroso”, afirma o pesquisador. Embora a primeira cena seja entre duas mulheres, no livro de Aluísio Azevedo, a cena homoerótica feminina voltaria a aparecer cerca de 70 anos depois, com a obra de Cassandra Rios, autora de Eudemônia, O prazer de pecar e Carne em delírio.

A próxima característica observada é a culpa, especialmente na geração de 1930, mas que permanece até os anos 1960. “A gente detecta alguns escritores que são católicos, homossexuais, mas que trabalham com a temática. Isso é um conflito danado entre o sujeito que escreve, a escrita que ele tem e o público que vai ler”, conta o professor do Ileel.

Um exemplo é o escritor Otávio de Faria, autor de Tragédia Burguesa, que produz cenas muito sutis. Segundo Camargo, é uma ideia da descoberta do sexo, de como isso funciona na vida das pessoas. “Logicamente, a gente vai vendo como o sexo é utilizado para controlar os corpos, para fazer com que as pessoas andem na linha, para fazer com que sejam bons cidadãos”.

O marco seguinte é o primeiro jornal brasileiro sobre homossexualidade, O Lampião da Esquina, fundado pelo pintor Darcy Penteado e pelos escritores João Silvério Trevisan e Aguinaldo Silva. O jornal circulou de 1978 a 1981, nos anos finais da ditadura militar. “Esses escritores são assumidamente gays e estão produzindo uma literatura que lida com questões sexuais de forma mais aberta, mais ampliada, menos patologizada, produzindo uma ideia mais libertária”, descreve Camargo.

Nos anos 1990, os personagens são diversificados. Autores como Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll desenvolvem a possibilidade de uma sexualidade que não fica obrigatoriamente nem na heterossexualidade nem na homossexualidade, mas podem transitar para vários lugares, com um corpo mais livre. Os últimos anos trouxeram obras voltadas para o público adolescente, como Para a sua Jukebox, de Marcio El-Jaick, que aborda a descoberta do corpo e do desejo.

“É bacana no projeto justamente a quantidade de textos que a gente consegue descobrir que não foram lidos, nem reconhecidos, escritores que ninguém nunca ouviu falar. Ao contrário do que possa parecer, porque eles sempre foram colocados como péssimos escritores, o que nós vamos notando é que eles são capazes de produzir uma literatura muito forte, muito vigorosa, e que foi relegada justamente porque a temática não permite”, explica o professor da UFU.

O método desse tipo de estudo literário começa com uma espécie de garimpagem em acervos, sebos, jornais antigos e na internet. Então os objetos selecionados passam por análise textual, em que são observadas e comparadas as cenas, os personagens e as representações. A fundamentação teórica das pesquisas do professor Camargo está vinculada à Estilística - parte da Linguística que estuda o estilo e a capacidade expressiva da linguagem - e aos Estudos Culturais - que abordam a cultura como algo que passa pelas práticas sociais e suas inter-relações.

O projeto também deu origem à editora O Sexo da Palavra, que publica obras sobre gênero e sexualidade, inclusive textos acadêmicos, e recebe propostas de autores atuais. A coletânea Sexo Raro, por exemplo, reúne obras editadas há muito tempo e que estavam fora do mercado editorial, como O Elixir do Pajé, de Bernardo Guimarães, e Impotência, de João do Rio.

“O que o projeto quer, a partir dos Estudos Literários, é contribuir para que se acabe com o preconceito, para que a gente tente reduzir a homofobia, ter situações em que as pessoas sejam tratadas mais igualitariamente”, afirma Camargo. “Se tem uma questão que me interessa sempre é que esse projeto seja um projeto de produção de pesquisadores que percebam a necessidade de continuar uma luta que nós, por estarmos na universidade, temos a obrigação de fazer”, conclui.

Palavras-chave: literatura Letras Divulgação Científica homoerotismo homossexualidade

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