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Entrevista/Lídia Meirelles

Índio quer terra

Coordenadora do Museu do Índio afirma que o momento é de defesa dos direitos dos indígenas

Publicado em 18/04/2019 às 16:24 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:56

 

Meirelles: 'Onde você tem território indígena você tem nicho de preservação ambiental' (foto: Marco Cavalcanti)

 

Sateré Mawé, Nambikwara, Uru-Eu-Wau-Wau, Xerente, Ka'apor, Galibi-Marworno, Canela Ramkokamekrá, Pitaguary, Tenharim, Galibi do Oiapoque, Xokleng... Isolados ou aculturados, eles fazem parte dos 255 povos indígenas do Brasil, segundo o Instituto Socioambiental (ISA).

Nesta entrevista, a coordenadora do Museu do Índio/UFU, Lídia Meirelles, fala um pouco sobre a realidade desses povos. Com sua visão crítica, a antropóloga se dedica à militância pelos direitos indígenas desde os anos 1970.

Quando perguntamos “De que os índios precisam?” a resposta pareceu vir antes de a pergunta ser concluída: “Terra.”

Porém, para ela, uma questão é mais urgente ainda. “Não adianta a gente discutir a importância da cultura indígena, a importância da língua, se a integridade física deles está ameaçada”.

 

Por que essa data, 19 de abril, é o Dia do Índio?

O Dia do Índio, celebrado no Brasil em 19 de abril, foi criado pelo presidente Getúlio Vargas, através do decreto-lei 5.540 de 1943. A data de 19 de abril foi proposta em 1940, pelas lideranças indígenas do continente que participaram do Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México. E aí se convencionou o dia 19 de abril como Dia do Índio americano, portanto, de todas as Américas.

Existe outra data, 9 de agosto [Dia Internacional dos Povos Indígenas], que trata da mesma situação do 13 de maio em relação à chamada, “Abolição da Escravatura” — que a gente questiona, porque não houve —, e o 20 de novembro que é o Dia da Consciência Negra. Então você tem mais uma diferença em termos de concepção mais política de datas. Esta do dia 9 de agosto é o dia da luta indígena com conotação mais política.

Para os grupos escolares, que são os grupos que mais frequentam o Museu do Índio, ainda prevalece o dia 19 de abril que é quando a escola faz suas comemorações, para ensinar as crianças algumas coisas. E a nós ficamos como um espaço onde pode se apresentar outras alternativas de exploração desse tema, que não só aquele convencional de pintar criança, de uma forma totalmente equivocada, de reforçar o estereótipo, que nós tentamos combater e questionar o tempo todo.

 

Acredito que cada pessoa deve ter uma visão do que é “índio”. O que é “índio”?

O [antropólogo] Eduardo Viveiros de Castro fala que todo mundo é índio exceto quem não é. Na verdade, o termo indígena vem substituir outros que possuíam uma conotação muito pejorativa, como é o caso do “silvícola”, do “selvagem”, do “aborígene”. Aborígene foi uma terminologia muito utilizada no século 19, no apogeu do evolucionismo: “os aborígenes australianos”, enfim, os nativos. E outro termo que se tornou bastante pejorativo, é o “primitivo”. “Nós vamos estudar os primitivos”. Primitivo, sempre traz consigo uma carga muito pesada de estereótipos. Algo que é primitivo é algo que é selvagem, é visto como bárbaro, atrasado, arcaico, rude, bruto, abrutalhado... primitivo. Indígena é um termo quase que global. Ele é utilizado nos Estados Unidos, na Europa, em todos os lugares onde existe uma população nativa daquele lugar. Indígena não existe só no Brasil. Eles estão nos Estados Unidos e na Europa. Na Finlândia, por exemplo, os Sami são “indígenas” em relação à população que ocupou o lugar na sequência. No Japão, por exemplo, existem ainda hoje, os Ainus, que são “indígenas” daquele lugar. A China possui cerca de 55 etnias.

Quem é índio, no Brasil? São todas aquelas populações, todas aquelas comunidades que se auto-reconhecem ou que se auto-declaram como indígena e que são reconhecidas também por essas mesmas comunidades como sendo indígenas. Então você percebe que ocorre o auto-reconhecimento, quer dizer: “eu sou indígena porque eu pertenço a esse povo, a minha mãe também, meu pai também; eu vim de uma linhagem, de vários ascendentes que também são, e essa mesma comunidade a qual eu me auto-reconheço, também me reconhece como sendo indígena”. É uma definição que pode ser muito aberta, mas eu penso que é o mais próximo da realidade que enfrentamos.

Além da diferença cultural entre eles, tem a diferença quanto ao grau de convivência e de relação que essas populações mantêm com a sociedade regional ou envolvente. Podíamos citar desde os Pataxó na Bahia, com aproximadamente, 500 anos de contato, como também os grupos isolados. Os Maxakali, em Minas Gerais, que convivem com a sociedade regional há cerca de quatrocentos anos de contato. Os povos isolados, cerca de 50, 70 grupos em situação de isolamento voluntário vivendo na Amazônia, demonstram que em algum momento travaram contato com não-indígenas, e parece que não gostaram e resolveram não continuar. A prova disso é, por exemplo, o Vale do Javari, no Amazonas com a maior concentração de povos isolados do mundo. Tem ali não só os Korubos, mas vários outros grupos.

Em um país completamente heterogêneo, com tamanha sociodiversidade nativa, tão complexa, há de se pensar o que é “índio”. Índio é você se auto-reconhecer e ser reconhecido pela comunidade a qual você está em contato, a qual você pertence. Não somos nós que vamos identificar ou definir a identidade indígena. Absolutamente. Porque não podemos alimentar essa arrogância. A sociedade ocidental se acha na prerrogativa de estabelecer quem é e quem não é. Como se fosse assim, tão simples. E não é.

 

O que nós, os “civilizados”, poderíamos aprender com os índios, tanto os isolados quanto os não isolados?

A primeira coisa, que nós já aprendemos há muitos anos, que os portugueses aprenderam, foi a de sobreviver nesse país tropical. Foi a primeira lição. Imagine sair da Europa e chegar a um lugar desconhecido, onde não havia nenhuma referência. Se os portugueses não tivessem observado o modo próprio como os índios se estabeleciam no espaço, como dominavam a natureza, a sua organização, o que comiam, como comiam, o que eles plantavam, como cultivavam etc., jamais teriam sobrevivido aqui. Então eu penso que a primeira grande lição foi a sobrevivência mesmo.

E depois disso, tudo que nós somos. Tudo! O jeito que falamos, a nossa língua. Só do Tupi mais de 22 mil vocábulos influenciam o português falado no Brasil. Sem contar línguas cujas populações estão mais próximas, por exemplo o Bororo, próximo à região de Cuiabá. A influência é enorme. O [geógrafo] Aziz Ab’Saber dizia que quando os portugueses chegaram aqui, tudo tinha nome. As montanhas, o relevo, os rios, as fontes de água, nascentes, os lugares, as referências naturais. Eram todas conhecidas e designadas pelos indígenas, da matriz linguística Tupi, Macro-jê, Aruak e Karib...  Inclui-se todas as referências indígenas para a fauna, para a flora... todo o mundo conhecido era denominado. E se a gente for observar bem, os nomes de lugares têm uma razão de ser. Eles foram designados daquela forma por conta do reconhecimento daquele lugar. Se prestarmos bem atenção, por exemplo, [o município de] Angra dos Reis foi construído no lugar que tinha um nome indígena que, se fosse traduzido à época, provavelmente, evitariam construir alguma coisa ali. Tratava-se de um termo para identificar que o local não era um bom lugar para se construir, pois tratava-se de um solo instável, com instabilidade. Então, o que nós somos, como nós somos, da forma que somos acho que nos coloca como fruto e resultado de processo de formação que contou, consideravelmente, com a cultura e identidade dessas populações.

 

Eles poderiam contribuir para melhorar as sociedades, principalmente as ocidentais, que vivem em crise?

São projetos humanos muito distintos. Nosso sistema capitalista impacta, de maneira brutal, tanto a vida das populações indígenas, quanto a questão ambiental. Porque trata-se de uma lógica e engrenagem para produzir o lucro. Entra em choque com a visão de mundo e com um projeto de humanidade que é totalmente diferente.  Um exemplo, se observarmos a forma como os índios, boa parte deles se dedica à agricultura, a plantar, é uma maneira muito mais racional, uma forma de pensar que o lugar e a terra tem que sustentar a família, que ela tem que se manter boa e fértil de uma forma natural para a posteridade. Porque se ela se perder, de alguma forma a sobrevivência da família corre risco.  

Agora, se for pensar pela nossa ótica, o que se faz? Derruba-se muito agrotóxico, muito fertilizante, muita química e não se pensa no amanhã. Porque a visão do capitalismo é lucro imediato a qualquer custo. Você não pensa no futuro daquela terra ou nas gerações futuras ou no que aquilo vai impactar no meio ambiente ou nas pessoas.

Nós temos muito que aprender. Quando tudo estiver acabado, não poderemos começar de novo. Quando você chega numa roça indígena, jamais pensa que aquilo é uma roça. Porque o que nós fazemos quando vamos plantar? Se limpa o terreno e tira tudo dele. Daí a praga, os bichinhos, os insetos, não têm o que comer. Você tirou toda a comida deles. O que eles vão fazer? Eles vão para cima do alimento que você plantou. Então os atacamos, jogando muito pesticida, agrotóxicos para liquidar com os insetos. Em uma roça indígena, você jamais imagina que aquilo é uma roça, porque eles não tiram nada. Eles plantam tudo entremeando os troncos, no meio de árvores caídas, no meio do mato, de tudo que tá ali. Porque aí você não tira o alimento dos bichos. Você transforma a terra em um ambiente que fornece alimento para todos.

 

O que o Brasil deveria fazer pelos índios hoje? De que os índios precisam?

Terra. [pausa] Garantir a demarcação, a homologação e o reconhecimento dos territórios originários. Porque isso é um direito originário. Ele é anterior à criação do Estado. Antes do Brasil se tornar um país, politicamente, geograficamente, os povos indígenas já estavam aqui. As sociedades indígenas de hoje são descendentes das populações que antecederam a chegada de qualquer outra. Isso é um direito consuetudinário. Significa que é um direito anterior à criação do Estado. O Estado não está fazendo mais do que obrigação. Não é só porque está na Constituição. Ela apenas reconhece o que já existia. Então é preciso garantir isso, o reconhecimento dos territórios indígenas, sua demarcação e homologação.

A situação atual demonstra um grande perigo de retrocesso. O próprio Estado está tentando descumprir a Constituição. Está incentivando a invasão dos territórios indígenas e está pensando em rever a situação dos territórios que já foram demarcados e homologados. Vivemos tempos de anti-indigenismo por parte do Governo Federal. É isso que temos hoje. O Estado, que deveria cuidar e zelar pela garantia dos direitos originários, e fazer cumprir a Constituição de 88 é o mesmo Estado que está tentando desrespeitar a própria Constituição. Haja vista, primeiro, o desmantelamento do órgão que tem como atribuição ser o órgão executor dessa política de reconhecimento e de defesa dos direitos, que é a Funai [Fundação Nacional do Índio]. Então, o desmantelamento, o desmonte, já faz parte desse projeto.

 

Além do Estado, tem outro fator que ameaça os indígenas, como o alcoolismo?

Se o Estado cumpre o que está previsto na Constituição, os problemas serão minimizados.

Tem muita gente que acha que é um desperdício ter território grande para uma população tão pequena, mas não acha que é desperdício um único dono de latifúndio possuir uma enorme quantidade de terra e não alimentar ninguém, a não ser o próprio bolso. É preciso fazer essa comparação. Como é que podemos achar absurdo que um povo tenha o direito coletivo a um território, mas não achamos absurdo que uma única pessoa possa ser dona de um território imenso que não gera nada para ninguém. Vai gerar o quê? Vai gerar lucro para o dono. Não emprega, a agricultura é mecanizada, acaba com o meio ambiente, acaba com tudo. São as contradições.

Agora, se temos um Estado que cumpre a Constituição brasileira, que defende os territórios… Porque, ao defender o território indígena, ao preservá-lo, ele estará garantido para todos. Todas as terras ocupadas pelas populações indígenas são terras da União. Não são deles. São de posse. Não são de propriedade. A propriedade é da união. E está mais que comprovado: onde você tem território indígena você tem nicho de preservação ambiental. Porque a lógica de exploração do ambiente é outra. O projeto de ocupação é outro.

Hoje, o mais importante, o mais emergencial, é fortalecermos o conhecimento sobre essa realidade, disseminar essas informações, para que possamos criar frentes de resistência junto com eles. Para mim, o mais importante hoje é isso, porque eu não vejo outra saída. É importante falarmos sobre a história e a cultura indígena, mas, é difícil quando a integridade física deles está ameaçada. Não é nem ameaça mais. É realidade concreta. Ameaça é quando você fica no campo da intimidação e da insegurança… Não. Não tem mais. O Estado, deliberadamente, já se posicionou. Em todos os campos. Não só no executivo quanto no Congresso Nacional.

Acho que o mais importante hoje é isso. Fortalecermos as bases da luta para apoio à resistência indígena. Nós nos apropriamos do conhecimento, das tradições, das informações, de todo o processo adaptativo nesse ecossistema, enfim, nos apropriamos de tudo e não vamos dar nada para aqueles que são os donos deste território? Ainda queremos tirar?

 

Na conjuntura atual, como está o ânimo para trabalhar com a questão indígena?

O Museu continua fazendo o trabalho que ele sempre fez que é de difundir a história e a cultura indígena brasileira. Agora, é óbvio que nós não somos neutros.  Nós somos pessoas. Estamos disseminando o máximo de informações, o mais próximo da realidade possível, para que possamos ampliar esse leque de resistência.

Desde os tempos da faculdade, desde o final dos anos 70, exerço militância nesta área, da forma que posso. Criamos a Comissão Pró-índio, no Rio de Janeiro, nesta época, mas eu não me lembro de ver uma situação tão ruim. Tão ruim. Durante a ditadura foi muito difícil. Não foi fácil. Durante, o governo Geisel, me lembro de um ministro do interior, Rangel Reis, que dizia, talvez usando outras palavras, mas ele afirmava claramente o seguinte: o governo brasileiro está fazendo todo empenho para que, no máximo, dentro de 10 anos nós não tenhamos mais índios no Brasil. São palavras deste ministro do Interior do Geisel, em plena ditadura militar. Acredito que a intenção era forçar estas populações a integrarem a comunhão nacional, fazendo-as desaparecer como etnias, ou mesmo matar aqueles que insistirem em manter as suas identidades.

Na verdade, assistimos hoje a repetição disso. Fazer com que os índios deixem de serem índios, incorporando eles à vida não indígena, trazendo para a cidade, criando mecanismos de desapropriação das terras. A intenção é tirá-los do seu próprio território, e fazer com que ele perca a condição básica de reivindicação da sua condição étnica, que é a questão da terra, a primeira delas. Abrir os territórios tradicionais ao agronegócio e à exploração mineral é desconsiderar a existência indígena, é banalizar a vida. Hoje estamos assistindo exatamente isso. As intenções do Estado estão postas, estão claras.

 

A cantora Rita Lee diz, na música, “um dia quero ser índio”. Você gostaria de ser índio?

[risos] Acho que cada um está no seu lugar. Eu acho que se tivermos uma alma indígena já está ótimo! A alma, a propósito, já está muito bom.

 
 

Palavras-chave: Indio indígena Dia do Índio Lídia Meirelles

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