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LEIA CIENTISTAS

Doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti: as responsabilidades do cidadão e a necessidade de melhoria na gestão pública

Confira o texto do professor Guilherme Garcia da Silveira, do Campus Pontal, para a seção Leia Cientistas

Publicado em 31/03/2020 às 14:59 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52

 

Foto: Pixabay

 

Como se não bastassem os problemas causados pelos quatro tipos virais de Dengue, a partir de 2014, o Brasil foi desafiado mais uma vez após a chegada de mais dois vírus praticamente desconhecidos: chikungunya e zika. 

O primeiro causa complicações neurológicas e dores fortíssimas nas articulações, que podem durar vários meses, deixando a pessoa incapacitada, e isso, muitas vezes, é um dos motivos para a instalação de uma depressão. 

A infecção por zika pode passar despercebida, pois cerca de 80% das pessoas com o vírus são assintomáticas, mas podem transmiti-lo mesmo assim, inclusive por via sexual. Se uma grávida entrar em contato com o vírus, há possibilidade do desenvolvimento de microcefalia no recém-nascido, cujas consequências são sérias e a criança exigirá cuidados especiais pela vida toda por parte das famílias que, muitas vezes, não têm sequer condições financeiras para este enfrentar o tratamento. 

 

Desde o início do século XX, o Brasil já combatia o mosquito que estava transmitindo febre amarela urbana. O sanitarista Oswaldo Cruz percebeu que, com a deficiência do saneamento básico e o descaso da população do Rio de Janeiro, não havia outro caminho: teria que organizar as brigadas sanitárias que, tal qual uma estrutura de um pelotão militar, tinham a permissão de entrar nas residências para eliminar os focos do mosquito, assim como está atualmente previsto pela Lei Federal 1331/2016, que permite que o agente de zoonoses possa adentrar nas residências cujo acesso esteja impedido ou que estejam fechadas ou abandonadas. Houve discussões e revoltas, mas conseguimos erradicar o mosquito Aedes aegypti do Brasil em 1955. 

Devido à descontinuidade das ações sanitárias, houve a reintrodução do mosquito em 1976. Com o descaso das gestões públicas e do próprio cidadão, atualmente, vivemos este caos provocado atualmente por estas endemias e ainda minimizamos o problema ou fingimos que ele não existe. E, assim, muitas pessoas morrem ou ficam incapacitadas por curtos ou longos períodos, exigindo cuidados e assistência especial em saúde pública. Não nos esqueçamos de que os serviços emergenciais de saúde, com superlotação e ineficiência evidentes, entram em colapso, pois não se prepararam para a explosão de casos dentro de um epidemia já esperada. 

A gestão pública, muitas vezes, parece que é surda, cega e pobre. Prefere trabalhar sob demanda, sempre reclamando da falta de verba, do que usar dados, estudos e experiências anteriores que contribuam na previsão de cenários possíveis de serem explorados. Segundo a OMS, para cada R$ 1,00 investido em saneamento básico, economizaríamos outros R$ 4,00 em saúde emergencial. De cara, se as gestões fossem eficientes e os interesses pessoais fossem transmutados em públicos, não teríamos que atender pacientes com muitas doenças ligadas à falta de saneamento, tais quais: cólera, dengue, chikungunya, gastrenterites, leptospirose e outras, além dos atendimentos de acidentes com animais peçonhentos que são atraídos por áreas insalubres à procura de alimento. 

 

Mas, se podemos prever estas doenças através de um trabalho técnico utilizando a história, dados e estatísticas, por que ainda estamos perdendo a batalha? 

Segundo o psicólogo canadense Albert Bandura, quanto mais pessoas existentes em um grupo com potencial de ajudar, menor a responsabilidade de cada uma delas se engajar nessa ajuda. Assim, a culpa é diluída ou repassada a todos os responsáveis. Isso é conhecido como difusão e deslocamento da responsabilidade e se aplica perfeitamente em relação ao combate ao mosquito Aedes aegypti. Os governos culpam as crises financeiras, o regime de chuvas, altas temperaturas, a introdução de novos vírus e a população pelo descuido. E essa, por sua vez, culpa os governos ou o vizinho, e o problema se intensifica até que haja um colapso social e na saúde pública, momento em que ações emergenciais são executadas e que quase sempre chegam atrasadas e são efetivas em curto tempo, até que o ciclo se inicie novamente. 

A existência de criadouros de Aedes aegypti é um fator ligado à falta de saneamento, já que eles geralmente são encontrados em água parada dentro de reservatórios (por exemplo, resíduos sólidos descartados inadequadamente) que existem dentro e fora das casas. Não devemos ignorar que existe uma responsabilidade compartilhada (prevista pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela lei n. 12.305/2010) pela destinação correta, seja por parte dos cidadãos ou do poder público. 

Por um lado, as prefeituras deveriam investir pesado para a resolução do descarte ou acumulação de resíduos sólidos nas residências por meio da elaboração dos Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, construção de Pontos de Entrega Voluntária (PEV), Ecopontos, apoio a Cooperativas de Coleta Seletiva e dispositivos legais para fiscalização e multas, além de campanhas permanentes de Educação Ambiental e em Saúde Pública, principalmente nos períodos de menor incidência das endemias. 

 

Quando temos um povo bem educado e um município que se interesse e se responsabilize pela correta destinação dos resíduos, o sucesso é garantido. Se o poder público não oferecer as condições mínimas para que a população realize o descarte de seus materiais, a culpa pelas más condutas tem que ser dividida. 

Há mais de 700 anos, a Europa sofreu um duro golpe, quando mais de um terço da população foi exterminada pela peste negra, que era transmitida por bactérias através das pulgas presentes nos roedores que se proliferavam na imundície das cidades. Não aprendemos nada com a estória e, mesmo com o advento do conhecimento através da história, nada mudou. Atualmente, vivemos no meio do “lixo”, das carcaças de animais e da sujeira produzida por nós mesmos. 

A efetividade da educação ambiental ainda não é uma realidade concreta, pois sensibiliza em maior proporção apenas uma parcela da educação formal: as crianças. Os adolescentes parecem que estão perdidos entre a gestão de tempo individual, preocupações inerentes à idade, redes sociais, internet e um futuro imediato. Os adultos são menos permeáveis à educação ambiental devido ao medo da quebra de paradigmas, ou seja, sair da zona de conforto através da mudança de comportamento. 

 

Batalhas vencidas raramente são atribuídas a um golpe de sorte, porque, geralmente, foram frutos de estudo, preparação e aplicação de técnicas diversas e contramedidas. No caso do combate ao Aedes aegypti não é diferente. Precisamos da aplicação da educação ambiental e em saúde pública em toda a população. Com aquelas pessoas resistentes, que em sua maioria são adultos, nos resta utilizar ferramentas jurídicas, através de medidas punitivas, como notificações e multas. Crianças sentem no coração, adultos no bolso. 

Os obstáculos para combater o mosquito são imensos, mas, com a colaboração coletiva entre a população e o poder público, não há barreiras que não possam ser ultrapassadas. A cada parte resta assumir a responsabilidade específica no entendimento de que não temos somente direitos, mas muitos deveres em relação ao bem coletivo. Precisamos nos desfazer das amarras do individualismo e do desdenho para que possamos alcançar a vitória. 

Apenas esperar que algo milagroso possa acontecer por parte dos vizinhos, da prefeitura, de Deus, divindades, santos ou por sorte não é totalmente aceitável se não fizermos nossa parte como indivíduos. Desde seus primórdios, a humanidade somente prosperou quando a união foi cultivada e, infelizmente, isso ocorreu, muitas vezes, sob a égide da desgraça no momento em que nos ajoelhamos para depois nos levantarmos. Isso não precisa acontecer sempre. É tempo de mudança ou seremos apenas espectadores do tempo e da história. E o planeta Terra sempre selecionará aqueles mais aptos para usufruírem de seus benefícios, independentemente de considerarmos nossa espécie como a mais inteligente. 

 

*Guilherme Garcia da Silveira é professor do Instituto de Ciências Exatas e Naturais do Pontal (Icenp) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Campus Pontal, e membro do Conselho Municipal de Saneamento Básico de Ituiutaba e do Comitê de Enfrentamento ao Aedes aegypti.

 

A seção "Leia Cientistas" reúne textos de divulgação científica escritos por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São produzidos por professores, técnicos e/ou estudantes de diferentes áreas do conhecimento. A publicação é feita pela Divisão de Divulgação Científica da Diretoria de Comunicação Social (Dirco/UFU), mas os textos são de responsabilidade do(s) autor(es) e não representam, necessariamente, a opinião da UFU e/ou da Dirco. Quer enviar seu texto? Acesse: www.comunica.ufu.br/divulgacao. Se você já enviou o seu texto, aguarde que ele deve ser publicado nos próximos dias.

 

Palavras-chave: Leia Cientistas Ciências Biológicas Pontal Divulgação Científica

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