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“Os encantos de Medeia”: teatro de luso-brasileiro em análise

Data de Publicação: 16/01/2014 - 14:57

Por Dielen Borges

Professora da UFU lança livro em que analisa a obra de António José da Silva, o Judeu, morto pela Inquisição
Diélen Borges Inquisição, transgressão feminina e teatro de comédia estão na obra “Os encantos de Medeia”, de António José da Silva, o Judeu (1705-1739). O escritor português reinterpreta o mito grego de Medeia, originalmente trágico, e cria uma opereta cômica. A peça do século XVIII faz parte da pesquisa de Kênia Maria de Almeida Pereira, professora do Instituto de Letras e Linguística da UFU, que resultou na publicação do livro “Os Encantos de Medeia”, pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) em 2013. A obra traz o texto do escritor português com a análise da pesquisadora. Leia a entrevista realizada com a professora Kênia Pereira. O que é o mito de Medeia? É um mito bastante antigo. A gente tem que voltar à Grécia Antiga, porque é lá que surge a história. Depois de ser repudiada pelo marido Jason, não suportando ter sido abandonada pela pessoa que mais amava, Medeia decidiu matar os filhos que teve com ele, na frente dele, no dia do casamento de Jason com a prima dela. Ela não suportou toda essa traição e matou os filhos. É um mito trágico, que Eurípides [poeta grego do século V a.C.] reelabora e leva para os palcos. Depois, outras Medeias surgirão, vários outros autores vão dialogar com ela. O que difere na versão criada por António José da Silva, o Judeu? A diferença é que, todas as outras Medeias de que a gente tem notícia, com raras exceções, terminam de forma trágica, com ela matando os filhos e indo embora, desaparecendo, fugindo. Em Calderon de La Barca, Fellini (no filme), Dante (na Divina Comédia) você tem a Medeia de forma trágica. Mas e António José? Por que ele inova? Porque a Medeia não tem filhos; ele cria os bobos da corte para fazer piada e brincadeira com esse tema; e não há assassinatos, porque está no campo da comédia. Na verdade, essa é uma Medeia engraçada, mas ao mesmo tempo traz críticas ao fanatismo religioso em Portugal. O António José viveu em plena Inquisição – no século XVIII, em Portugal – que matou judeus e muitas mulheres consideradas bruxas. Ele também foi vítima da Inquisição. Então, no fundo, essa Medeia que faz rir também é para rir de Portugal. Como foi feita a sua pesquisa e a organização do livro “Os encantos de Medeia”? É um projeto que eu venho desenvolvendo há uns dez anos, que é publicar oito peças com a minha análise. Eu estou divulgando o teatro de António José e trazendo à luz, de novo, um teatro que é esquecido, porque poucos o leram. E a obra dele tem 60 anos fora de catálogo. Meu projeto é estudar a Inquisição e o teatro em Portugal no século XVIII. Eu já publiquei “Obras do Diabinho da Mão Furada”, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, “Guerras do Alecrim e Manjerona”, pela Edufu, e agora este pela Edusp. E ainda vai sair outro pela Edufu, que é o “Quixote”. Porque ele também tem um Dom Quixote, ele dialoga com Cervantes. E a Medeia do António José é baseada no Eurípedes, só que ele inverte, faz uma paródia, uma brincadeira. Fala sobre o fanatismo, porque as pessoas acreditam mesmo na Medeia, que ela é bruxa, faz a árvore voar, jardim sair correndo... E ele ri disso, das crenças em bruxarias e em feitiços. Eu estou orientando duas pessoas no mestrado com o tema do António José e tem também a iniciação científica com o tema. Onde os interessados podem adquirir a obra? Pelo site da Edusp. Eu vou deixar também na biblioteca da UFU para empréstimo. E a quem deve interessar “Os encantos de Medeia” com a sua análise? O mito de Medeia é fascinante, porque além de tratar dessa questão da Inquisição em Portugal, acaba falando da questão de gênero, da mulher perseguida desde tempos memoriais, mas também da mulher transgressora. Eu acho que essa Medeia do António José até antecipa um pouco o feminismo, porque é uma mulher transgressora, ela não quis ter filhos, ela não casa, ela dá a volta por cima, ela não precisa cometer uma tragédia para se definir, para poder se colocar. A identidade dela não é uma tragédia, não é um assassinato, é a liberdade. Ela foge. É para mostrar também como o António José elabora a figura do feminino. Eu falo um pouco sobre as perseguições às mulheres no século XVIII, às bruxas, que é um tema que eu trabalho também, já dei minicurso sobre as bruxas na Inquisição. É um tema interessante para quem se interessa por gênero, quem trabalha a mulher ou essa época na história. E pelo teatro do António José, que é um autor pouco conhecido. Quando a gente fala sobre ele nos jornais é para mais pessoas terem chance de ler. E o legal é que o António José é luso-brasileiro, ele está na “fronteira”. Nasce no Brasil, no Rio de Janeiro, e com sete anos de idade vai embora para Portugal com a família toda, que foi declarada judia e condenada aqui no Brasil. Ele morre lá, com 35 anos de idade, queimado pela Inquisição.

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