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Ciência

Como se fazia música 500 anos atrás?

Pesquisadores da UFU e da Unesp descobrem vantagens em ler partituras da Renascença

Publicado em 05/08/2019 às 13:48 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:56

 

Paula Callegari, professora do curso de Música da UFU, durante pesquisas no Museo Internazionale e Biblioteca della Musica di Bologna, na Itália (Foto: Arquivo dos pesquisadores)

A música existe há séculos e a pesquisa científica pode revelar detalhes dessa arte de quando ainda nem existiam as gravações. Dois professores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em conjunto com um grupo de pesquisadores de São Paulo, estudam partituras e outros documentos da época da Renascença (século XIV ao XVI) e, ao experimentar a prática musical desses materiais, descobriram vantagens nas notações renascentistas quando comparadas com as contemporâneas.

“O que a gente faz é uma linha da musicologia que se chama filologia aplicada. A gente volta nos documentos originais e experimenta a prática musical a partir do que encontra de recomendação nessas fontes primárias. São partituras, tratados e manuais que ensinam a tocar os instrumentos da época”, explica a professora Paula Callegari, do curso de Música da UFU. Ela e o professor Cesar Villavicencio, que também atua na UFU, integram o Grupo de Pesquisa em Música da Renascença e Contemporânea (GReCo), da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Uma das descobertas do grupo foi a vantagem de ler as partituras originais, com as claves e as fórmulas de compasso utilizadas na época. “Para nós é mais vantajoso do que utilizar edições modernas, porque existe uma correspondência muito direta entre os tipos de clave que os compositores escolhiam e a tessitura e a abrangência de notas que o instrumento tem”, afirma Callegari.

Partitura do compositor italiano Cipriano de Rore, do século XVI. Na página temos o início de quatro vozes. As três primeiras, com A A e V em dourado, indicando as vozes de Altus, Altus e Quintus, têm claves de dó na terceira linha. E a última voz, com T em dourado, indicando a voz de Tenor, tem uma clave de dó na quarta linha. (Foto: Arquivo dos pesquisadores)

Os compositores renascentistas evitavam, por exemplo, extrapolar os limites do pentagrama - aquele conjunto de cinco linhas e quatro espaços, também chamado de pauta musical, em que as notas são escritas. As notas que aparecem mais embaixo são as mais graves e as anotadas mais em cima são as mais agudas. Como era possível expressar a variedade de alturas das notas sem utilizar as linhas suplementares do pentagrama? Com uma variedade de claves muito maior do que se utiliza hoje.  

As claves são símbolos anotados no início da pauta musical que indicam ao músico como fazer a leitura da partitura, pois definem o nome e a altura das notas. A clave mais utilizada hoje é a de sol, em formato de S, anotada na segunda linha do pentagrama. Outra clave ainda comum é a de fá, parecida com a letra F e geralmente aplicada na quarta linha. Segundo Callegari, durante a Renascença, a clave de sol aparecia também na primeira linha, a clave de fá podia vir na terceira e quinta linha e a maior variedade de todas era com a clave de dó, semelhante a dois Cs invertidos, que podia aparecer em todas as linhas.

 

Arte: Abrão Osório Júnior


 

“Com o tempo, isso foi se perdendo e, hoje em dia, o mais comum é que a música seja anotada só na clave de sol na segunda linha e na clave de fá na quarta linha. Se resumiu quase tudo a isso. Mas, quando a gente pega a edição modernizada, a gente perde a correspondência da clave com o instrumento”, explica a professora.

Documentos do início do século XVII indicam que havia mais de 50 tipos de famílias de instrumentos. Além da flauta, os renascentistas tocavam corneto, trombone, viola da gamba, alaúde, entre outros. A organologia dos instrumentos foi se modificando com o tempo. Um exemplo é a flauta transversal, que era feita em madeira e sem nenhuma chave, mas sua versão moderna é construída com liga metálica e cheia de chaves.

A flauta doce, que é o instrumento pesquisado pelos professores da UFU, tinha muitas variações, desde flautas com poucos centímetros até instrumentos com mais de dois metros. Esse conjunto de flautas é conhecido como consort e a maneira como os pesquisadores sabem qual é a combinação de flautas mais adequada à partitura da época é graças à variedade de claves. Há uma combinação padrão recomendada por autores e que, em casos específicos, pode ser alterada.

 

Da UFU para a Europa

Há cerca de um mês, entre os dias 25 de junho e 8 de julho, Callegari e Villavicencio participaram de atividades de pesquisa na Europa. Após o GReCo fechar uma parceria com o Museo Internazionale e Biblioteca della Musica di Bologna, da Itália, os pesquisadores passaram a ter pleno acesso ao acervo musical da instituição. Os professores da UFU também participaram da 47ª edição do evento Medieval and Renaissance Music Conference, na Suíça. 

Villavicencio apresentou resultados da pesquisa do GReCo sobre riddles (charadas) no repertório renascentista. De acordo com o que o texto musical diz, o músico consegue avaliar se vai aplicar a combinação padrão ou se vai ter que aplicar algum tipo de exceção na escolha dos instrumentos. Os riddles são exemplos de músicas em que o intérprete tem que encontrar uma solução para tocá-la. Por exemplo, quando há apenas uma linha musical escrita, mas trata-se de uma peça a duas, três ou quatro vozes. Cabe ao intérprete identificar essas outras vozes, naquela única linha escrita, para fazer a resolução musical.

Callegari e Villavicencio na Medieval and Renaissance Music Conference, na Suíça (Foto: Arquivo dos pesquisadores)

A pesquisa que Callegari desenvolve em seu doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) também foi apresentada na Suíça. A professora estuda a obra de Gioseffo Zarlino, teórico musical e compositor italiano que viveu de 1517 a 1590. “A minha pesquisa vai para uma parte um pouco mais teórica, porque ela faz uma análise do tratado do Zarlino, Le Istitutioni Harmoniche, a partir do conceito de virtude na retórica. Esse conceito vem primeiramente da ética aristotélica e depois é trazido para a parte da elocução retórica. A elocução é a maneira como você vai organizar, dar forma ao seu discurso. Na música isso acontece da mesma maneira. Especialmente nesse período, quando a música é principalmente vocal”, explica Callegari.

O GReCo recebe financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e tem como foco a música da época da Renascença, que conforma a base para a prática musical que se tem hoje em dia.  O que os pesquisadores buscam não é uma reconstrução da música daquele momento, mas sim, um entendimento sobre como a música era feita e qual o seu propósito, para que ela possa fazer sentido hoje em dia também.

“A gente tem conseguido resultados extremamente interessantes. Os instrumentos sofreram modificações em sua construção ao longo do tempo. O modelo das flautas doces da Renascença é drasticamente distinto daquele do Barroco. Depois, a flauta doce praticamente cai em desuso e o modelo que a gente estuda hoje em dia, inclusive aqui no curso de Música [da UFU], é principalmente esse modelo do período Barroco. Só que a época de ouro da flauta doce é a Renascença. Então, a gente está buscando essa ponte com a contemporaneidade também. Os compositores estão sendo convidados a conhecer esses instrumentos, essa linguagem lá de trás para produzir música nova”, conclui Callegari.

 

Ouça alguns resultados sonoros das pesquisas do GReCo:

 

 

 

Palavras-chave: música renascença Unesp arte Divulgação Científica

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