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CIÊNCIA

Pesquisa da UFU avaliará impactos sociais do coronavírus em comunidades religiosas

Serão analisados espaços de Umbanda e Candomblé no Triângulo Mineiro

Publicado em 09/04/2020 às 17:03 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52

 

Máscaras estão sendo confeccionadas com tecido de roupas dos Orixás para comunidades em Uberaba-MG (Foto: Arquivo do pesquisador)

 

O estado de Minas Gerais já registrou 655 casos confirmados de Covid-19; desse total, 15 foram a óbito. Em decorrência da pandemia, pesquisadores de religiosidade popular da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) estão abordando os impactos sociais do novo coronavírus nas comunidades de Umbanda e Candomblé em municípios do Triângulo Mineiro. A pesquisa “Impactos da Epidemia de Coronavírus em comunidades religiosas tradicionais de matriz africana do Triângulo Mineiro” tem como finalidade entender de que modo a doença está afetando os encontros, projetos e ações dos grupos religiosos minoritários no cenário brasileiro.

O estudo parte da perspectiva da Geografia do Sagrado, que analisa os aspectos das relações estabelecidas através dos fenômenos e objetos de crença religiosa. A investigação, envolvendo a pandemia do coronavírus, faz parte da macro pesquisa “Representações espaciais e sociais da fé e da religiosidade popular na mesorregião geográfica Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, MG”, registrada na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação (PROPP-UFU) e de autoria de Anderson Portuguez, professor no curso de Geografia do Instituto de Ciências Humanas do Pontal (ICHPO-UFU) e do Programa de Pós-graduação em Geografia do Pontal (PPGEP-UFU).

 

Religião

As religiões de matriz africana são aquelas que surgiram da cultura do continente africano e que foram perpetuadas durante o período de escravidão no Brasil (1550-1888). Na pesquisa em questão serão analisadas duas delas: a Umbanda e o Candomblé, que têm 0,3% da população brasileira como praticantes e contam com a maior representatividade de pretos dentre todas as religiões; são 21,1% dos praticantes, segundo o Censo Demográfico do Brasil de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O Candomblé surgiu, há mais de 5 mil anos, a partir de cultos tradicionais africanos, baseado na crença em um ser supremo e nas forças divinas de diferentes orixás. A Umbanda, formada no século 20, sintetiza movimentos religiosos como o Candomblé, o Catolicismo e o Espiritismo. Portuguez, o docente que comanda a pesquisa da UFU, afirma que se tratam de comunidades consideradas vulneráveis devido à ampla desvalorização dos traços culturais de minorias étnicas e de classes sociais mais pobres no Brasil. “Continuam sendo os pretos pobres de periferia, que não são cristãos, e que precisam ser convertidos e domesticados ou que precisam se esconder”, diz.

A crítica do docente, segundo ele, refere-se à lógica elitista de ver o mundo apenas pela perspectiva dos grupos sociais majoritários. “Eu acredito que muitas pesquisas serão feitas para tentar compreender o impacto da pandemia na sociedade como um todo. Acredito que muitas pesquisas vão ser feitas do ponto de vista médico, clínico e econômico. Mas tenho minhas dúvidas se muitas pesquisas serão feitas pensando o problema a partir do olhar de comunidades excluídas”, questiona.

Para Portuguez, essas comunidades possuem um papel social importante, pois muitas pessoas que passam por dificuldades dependem delas para viver. “Muitas casas de axé dão comida para as pessoas que fazem parte da comunidade. Então, como que fica agora? A invisibilidade dos terreiros nas cidades é uma coisa que faz com que a sociedade não perceba trabalhos sociais importantes”, analisa.

Além disso, segundo o professor, os grupos se tornam mais interessantes ainda para observação, neste momento de pandemia, devido aos seus elementos de medicação caseira, ervas para banho e na crença no Orixá chamado Omolu. Esse último é considerado o mais temido de todos e senhor de todas as doenças. Segundo um princípio teológico da religião, o coronavírus faria parte de uma cobrança do Orixá e sua solução seria provinda do mesmo. Entender quais relações passam a existir a partir disso é o objetivo do professor. “Julgar válida ou não essa crença não importa. O que importa para mim é: a crença existe? Existe. Já que ela existe, ela já é um fato cientificamente estudável”, afirma.

 

Velas são acessas todas as segundas-feiras, em uma das comunidades de Ituiutaba-MG, para que os ancestrais tragam proteção durante a pandemia (Foto: Arquivo do pesquisador)

 

Pesquisa

Estão sendo monitoradas, no momento, 16 comunidades de Umbanda e Candomblé diferentes, que serão somente identificadas de acordo com o nome do bairro e dispostas em um mapa ao final da pesquisa. Elas se localizam nas cidades da chamada MGTMAP (Uberlândia, Uberaba, Araguari, Araxá, Patos de Minas, Ituiutaba, Patrocínio e Frutal), uma das dez regiões de planejamento do estado de Minas Gerais e atualmente com mais de 2,3 milhões de habitantes.

Segundo o professor, são denominadas como comunidades por terem um número expressivo de praticantes e não serem somente um grupo de pessoas que frequentam uma casa, justamente um dos critérios de escolha. Outros parâmetros são que as casas estejam em funcionamento há pelo menos dois anos, que realizem atividades litúrgicas e façam atendimento ao público. As entrevistas da pesquisa, para mensurar os impactos sociais da pandemia, estão sendo feitas por aplicativo de mensagens, justamente devido ao isolamento por conta do coronavírus.

O desenvolvimento da pesquisa será feito por Portuguez com a ajuda de três mestrandos. Um deles é Leonardo Souza, advogado e aluno de mestrado em Geografia na UFU, que no momento também está envolvido na temática, em sua dissertação sobre intolerância religiosa em relação aos terreiros de Umbanda e Candomblé em Uberlândia. Souza conta que já estavam em trabalho de campo para conhecer as práticas e que, até como pesquisador do tema, percebeu a discriminação constante contra esses grupos religiosos. “Fui vítima de discriminação por mais de uma dezena de vezes. As pessoas chegam em rede social e atacam. As pessoas me abordarem na rua e definitivamente atacar, me falar coisas que eu jamais imaginei que ouviria. Até mesmo na própria academia”, expõe.

Ademais, segundo Souza, as redes sociais, apesar de serem utilizadas pelas comunidades para dar continuidade aos encontros dos seguidores, também são espaços de disseminação desse preconceito por pessoas intolerantes. Outra questão é entender como que os grupos estão lidando com as informações internas e externas à religião e como isso impacta as práticas tradicionais da religiosidade.

Portuguez afirma que a manutenção do sagrado nas comunidades está sendo observada tanto nas entrevistas quanto na própria comunicação entre os seus seguidores, e que tipo de relações são incentivadas a partir disso. “Só é possível enxergar a ciência que pode ser produzida sem colocar as suas crenças na interpretação do que está sendo dito. Sem se importar se é verdade ou não”, afirma.

Mesmo sem estar concluída, já foi possível levantar alguns dados preliminares sobre a pesquisa. Segundo os pesquisadores, todas casas fecharam, os atendimentos acontecem por telefone e as que fazem projetos sociais, como a distribuição de cesta básicas, a maior parte estão suspensas. “A gente tem percebido um certo temor, porque a matriarca de uma das casas tem mais de 80 anos e é do grupo de risco. Então, até mesmo as atividades internas precisam ser suspensas para que ela não seja exposta. Isso impacta diretamente nas finanças dessas comunidades”, conta.

Para Souza, a ciência tem sido aceita pelas comunidades, com o seguimento das orientações de isolamento social do Ministério da Saúde e, por outro lado, a questão da religiosidade também será reconhecida ao final do surto. “Os créditos vão ser dados tanto à ciência, pelas contribuições inestimáveis, quanto à religião pela questão dos Orixás. Uma não vai efetivamente excluir a outra”, aponta.

A pesquisa não tem previsão de publicação, pois segundo Portuguez não existe uma preocupação quanto ao produtivismo. Nos próximos 40 dias, os resultados já estarão finalizados e, posteriormente, serão divulgados, com a intenção de publicação em revista científica. Para o professor, a razão dos grupos não hegemônicos continua sendo ignorada, ainda mais em momentos difíceis como o atual. “A minha preocupação não é como que essa pesquisa vai impactar a sociedade como um todo e, sim, como ela pode impactar esses grupos”, conclui.

 

Palavras-chave: COVID-19 Religiosidade Popular Geografia do Sagrado Umbanda candomblé UFUContraOCorona

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