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Gênero

Comunidade LGBTQ e o direito da solidariedade: doar sangue

No Dia Internacional do Orgulho LGBTQ, celebramos uma conquista importante para a sociedade em geral

Publicado em 29/06/2020 às 22:05 - Atualizado em 22/08/2023 às 20:29

Junho é o mês do Orgulho para a comunidade de Lésbicas, Gays, Bisexuais, Transexuais e Queers, conhecido como Mês do Orgulho e simbolizado nas redes sociais com a hashtag #PrideMonth (mês do orgulho, em tradução livre). E o dia 28 é o dia escolhido para celebrar os direitos da comunidade internacionalmente. A data foi escolhida pelo episódio ocorrido em 1969, no bar Stonewall Inn, Nova Iorque, onde o público LGBTQ sofreu repressão policial por ‘conduta imoral’. A partir deste evento, foram feitos protesto em prol dos direitos e igualdade entre pessoas do grupo e o restante da sociedade. 

 

Sessenta anos se passaram e muitos direitos foram conquistados pela comunidade mas muitas atribuições ainda eram - e permanecem sendo - negadas a esse grupo social. Até maio desse ano, pessoas LGBTQ eram restringidas do gesto da doação de sangue. Na legislação vigente, a Portaria 2.712 de 12/11/2013, do Ministério da Saúde, diz, no art. 64: “Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo: IV – homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”, ignorando questões de gênero, isso acabava por incluir mulheres transexuais - que pelo preconceito - eram lidas como homens socialmente, e acabava por restringir também mulheres cisgênero (que se adequam com seu gênero biológico) lésbicas ao procedimento de doação.

 

Esse inciso IV do artigo 64 é herdado de regulamentações anteriores feitas pelo Ministério da Saúde, mostrando que o Brasil ainda vive às sombras do preconceito que assolou os homens homossexuais nos anos 80, época do surto do HIV. Somente em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou, por sete votos a quatro, as determinações que impediam pessoas da comunidade LGBTQ de doarem sangue. A votação aconteceu no dia 8 de maio onde a maioria dos ministros do STF considerou a restrição inconstitucional e discriminatória. Até essa decisão, a resolução nº 34, de 2014, da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Portaria nº 158, de 2016, do Ministério da Saúde, mantinha que gays, lésbicas e transexuais não podiam fazer a doação, ainda que os hemocentros estivessem com estoque baixo.

 

Os questionamentos durante a doação

 

O critério da Anvisa determinava que as unidades que realizam a coleta das doações questionassem sobre as práticas sexuais dos doadores - um procedimento normal, visto que o cuidado com a saúde pode comprometer a qualidade do material doado -mas a realidade é que a Anvisa considerava que os chamados HSH (homens que fazem sexo com homens) deveriam ser considerados inaptos nos 12 meses que antecedem a doação.

Gabriel Souza, estudante de Jornalismo, sempre teve vontade de doar mas sempre foi impedido pela sua orientação sexual. “Me sentia mal porque eu me considero uma pessoa saudável e tem um monte de gente que morre por não achar um sangue compatível e, por conta da minha orientação, era proibido de ajudar”, conta o universitário. 

 

Já a pedagoga Bruna Laryssa Soares Pacheco teve que mentir sobre sua sexualidade e se sentiu constrangida durante o questionário. “Perguntaram há quanto tempo eu tive relação sexual e mencionou parceiro na pergunta, em alguma delas, se eu namorava com ele - no masculino. Eu disse que sim. Além das perguntas normais: idade?, fuma?, bebe?…”. Ela diz que não sentiu que eles duvidaram das respostas mas se sentiu mal em ter que mentir para realizar um ato de solidariedade: “Na verdade, eu fiquei constrangida no primeiro momento,  mas percebi que não duvidaram das minhas respostas. Me senti mal por ter ido com minha parceira na época e ainda inventar algo pra salvar vidas”, relata a jovem.

 

Ana Luísa Rockenbach, advogada, costuma doar sangue pelo menos três vezes ao ano, respeitando os intervalos necessários. Ela conta que seguem o procedimento de perguntarem sobre parceiros sexuais fixos e que, sempre que ela responde que não, logo em seguida já é questionada se tem relações com pessoas do mesmo sexo. “Obviamente tive que mentir nessa parte”, conta. Questionada sobre se já sentiu alguma hostilidade na pergunta dos profissionais e se já desconfiaram da sua orientação sexual, a advogada comenta sobre uma situação de discriminação: “Algumas vezes já sim, outras perguntaram de forma neutra, pra “saber” mesmo. Uma vez fui questionada pelo enfermeiro de forma insistente, pois “alguém com cabelo raspado não tem cara de ser hetero”, afirma.

 

Rockenbach comemora o avanço conquistado esse ano mas confessa que ainda permanece um receio. “Ainda acho que enfrentaria algum preconceito ou desinformação do pessoal que faz a triagem ao informar sobre a minha orientação sexual na hora de doar porque vai ‘abrir margem’ para muita pergunta que não é necessária e preconceituosa. Ou até mesmo que realmente barrem a minha doação na hora e caso não se recorra ao judiciário para garantir o direito de doar, ficaria impedida mesmo. Mas acho excelente e espero que essa visão mais realista minha não se concretize. Na próxima vez que for doar, vou ‘sentir’ a triagem e ver se vou ‘poder’ informar sobre a minha orientação sexual de forma honesta ou não”, reitera a advogada.

 

O que muda com a decisão do Supremo Tribunal Federal

 

A intervenção do STF altera as regras do procedimento e retira a pergunta sobre a sexualidade do grupo do questionário, visando agora apenas os critérios de saúde do doador para garantir a integridade do sangue doado.

 

A gerente de Captação e Cadastro da Fundação Hemominas, Viviane Guerra, explica como funciona a triagem para os doadores: “Ao chegar, o candidato deve apresentar um documento de identidade oficial e com foto e é feito um cadastro com os dados pessoais. Logo em seguida, ele passa por uma triagem clínica com um profissional da saúde e será avaliada sua condição de saúde atual e pregressa. É um procedimento em total sigilo, feito com o intuito de avaliar as condições para a doação, garantindo a segurança do doador e do paciente que vai receber o sangue.  As restrições, normas, requisitos e os critérios para doação de sangue serão aplicados igualmente a todos os candidatos, sem distinção discriminatória de cor, raça, orientação sexual, identidade de gênero, entre outros, avaliando-se justificadamente as condutas individuais visando à proteção da saúde pública”. 

 

“Se estiver tudo ok, o doador fará a um pequeno lanche, higienizará os braços e seguirá para a coleta da bolsa de sangue. Após a coleta, o doador fará um novo lanche, receberá orientações a serem seguidas após a doação e será liberado. Todo material é descartável e a equipe é especializada, garantindo a segurança no atendimento ao doador”, reitera. 

 

Rockenbach alerta que as decisões do STF nem sempre possuem efeito imediato. Nesse caso, Guerra explica se existe alguma penalidade para os hemocentros que ainda, por algum motivo, recusarem as doações da comunidade LGBTQ: “Não temos como falar em penalidade, posto que a normatização das atividades em hemoterapia é de competência do Ministério da Saúde. O que podemos afirmar é que todas as unidades da Fundação Hemominas  estão preparadas para atender a todos, LGBTQ ou não,” afirma a funcionária.

 

Guerra ressalta que toda mobilização em prol da doação de sangue é sempre muito positiva. ”Esperamos que reflita diretamente no aumento das doações [a permissão aos LGBTQ], melhorando o estoque. A doação de sangue é uma causa social, extremamente necessária. Importante ressaltar que a mudança só se concretiza com a efetiva ação. Então, é preciso doar”, finaliza.

 

A mudança na prática

O Ceará foi o primeiro estado do Brasil a cumprir a decisão do STF e implementar a ideia de que não existem pessoas de risco e sim comportamentos de risco, independente da orientação sexual.

 

O Centro de Hematologia e Hemoterapia do Maranhão (Hemomar) tem buscado novos doadores regulares desde a aprovação da medida, além do Hemominas, que como dito por Guerra, já está preparado para atender a todos os públicos. 

Para ser um doador é necessário ter entre 16 e 69 anos (menores de idade devem estar acompanhados de responsável), pesar mais de 50 kg, não ter ingerido álcool nas últimas 24 horas e estar em boas condições de saúde. As condições e restrições completas podem ser lidas no site do Hemominas. 

 

Lembrando que não existe grupo de risco e sim, conduta de risco. Todo sangue recebido nas doações é testado por determinação legal, sendo inexistente o risco em relação a segurança e qualidade. Ser LGBTQ não contamina ninguém, o preconceito sim.

 

Palavras-chave: LGBTQ+ Doação de sangue Hemocentro STF DIREITO Solidariedade

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