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Especial

Programa “Trocando em Miúdos” completa 34 anos; conheça a história de vida do apresentador Márcio Alvarenga

Para além do ofício de jornalista, o radialista se aventura pelo cinema, pela música e pela literatura

Publicado em 16/08/2021 às 11:18 - Atualizado em 22/08/2023 às 20:25

 

O ano era 1955. A população brasileira participava da eleição que nomearia Juscelino Kubitschek como presidente da República e, nas rádios, os sucessos do momento eram as canções “O menino da porteira”, “Saudosa maloca” e “Escurinho”. Entretanto, outro acontecimento marcante (e ainda desconhecido), sucedia-se em São Carlos, cidade interiorana de São Paulo: no porão da casa de Anina Manzi Alvarenga e Geraldo Sampaio Alvarenga, uma criança de cinco anos de idade montava uma rádio imaginária. Com um toca-disco e um espremedor de alho da mãe servindo de microfone, Márcio Manzi Alvarenga anunciava as músicas que davam vida e movimento à sua fabulação. O que ninguém sabia é que, ao longo dos anos que viriam, Alvarenga se tornaria um dos maiores radialistas da região.

Em princípio, a paixão pelo rádio tem influência dos pais de Alvarenga. Era do gosto de Geraldo Alvarenga ouvir músicas clássicas na Rádio Eldorado toda noite. “Quando eu ia dormir, o meu pai sentava na cama para me fazer companhia ouvindo o rádio. E eu me acostumei com isso”, recorda Alvarenga. Nesse ínterim, Nina Alvarenga, como era chamada pelos amigos e familiares, preferia as radionovelas. Um dia, ela escutava um episódio dramático, quando chegou o pequeno Alvarenga, perguntando: “Tonico morreu? Tonico morreu?”. Tonico era um dos personagens da novela e estava, de fato, à beira da morte no enredo. É que a criança, mesmo muito nova, atentava-se aos sons que saíam de dentro daquela caixa misteriosa.

Mas o rádio não foi a única paixão de infância da vida de Alvarenga: a outra estava nas telas. Como Geraldo era caixa de banco durante o dia e porteiro de cinema durante a noite, era comum que a esposa e o filho fossem buscá-lo ao fim do expediente. Então, não demorou a chegar o momento em que Alvarenga se desvencilhou das mãos da mãe e entrou às escondidas na sala de projeção. Lá, a tela iluminada e a voz de Mario Lanza em “O Grande Caruso” o surpreenderam. Ele resume o momento numa palavra: “Êxtase!”. Mais tarde, Alvarenga passou a frequentar as matinês do cinema e a paixão inicial tornou-se, cada vez mais, um amor dedicado. Tamanha diligência era aplicada num caderno, que Alvarenga mantinha aos 12 anos de idade, onde anotava os filmes a que assistia, com ficha técnica incluindo título, atores principais, diretor, compositor da trilha sonora, sinopse, comentário e nota.

Foi assim que rádio, cinema e música se entrelaçaram eterna e proficuamente na vida de Márcio Alvarenga. Anos mais tarde, essas artes acabaram por convergir na literatura.

 

Histórias hilárias, histórias inacreditáveis

Uma das primeiras manifestações do entrelaço entre rádio, cinema e música se deu na Rádio Progresso, a primeira rádio em que Alvarenga trabalhou. Ele foi contratado como locutor reserva ainda adolescente, com apenas 14 anos de idade, e espantava os funcionários devido à desenvoltura e à naturalidade que expressava no veículo. A Progresso se localizava justamente em cima do cinema de São Carlos e, no setor técnico da rádio, havia uma janela que dava para a sala de projeção. Então, Alvarenga e os colegas fizeram um buraco na parede e, dali, o adolescente assistia aos filmes sempre que precisava gravar as locuções à noite.

Desde sua estreia na rádio, Alvarenga acumula grandes histórias, muitas delas carimbadas pelos anos de censura advindos da Ditadura Militar. Uma delas, por exemplo, data de 31 de março de 1964, um dia antes do Golpe de Estado no Brasil. Nesse dia, os funcionários de um frigorífico de São Carlos fizeram uma passeata contra o atraso dos salários e o locutor titular da tarde, Antônio Morales, saiu da rádio para participar das manifestações. Nunca mais houve notícia dele. “Ele não apareceu pela manhã e eu fui guindado à condição de locutor titular nessa circunstância”, conta Alvarenga.

Nesse contexto de repressão, ele foi o primeiro jornalista a conseguir entrevistar o ator, roteirista e cineasta Anselmo Duarte depois que este conquistou a Palma de Ouro e o primeiro a entrevistar a mãe do teatro brasileiro Cacilda Becker antes da sua morte. Em ambos os casos, assim que saiu das entrevistas, Alvarenga foi interceptado por censores que exigiram dele a fita com as falas gravadas. Primeiro por sorte, mas depois por estratégia, Alvarenga mantinha no bolso também uma fita virgem. Entregava-a ao censor, corria à rádio, fazia uma cópia da entrevista e, depois, fazia-se de desentendido ao agente militar. “Eu me enganei!”, exclamava ele. “Eu tinha duas fitas no bolso. Como é que eu posso saber que te entreguei a fita virgem? Eu fiquei tão desorientado com a sua abordagem…”, repetia.

Depois da Rádio Progresso, em São Carlos, Alvarenga trabalhou na Rádio Renascença e no jornal Diário de Notícias, em Ribeirão Preto; e na Rádio Difusora, na TV Paranaíba e na Rádio Universitária FM, em Uberlândia. Chegou à cidade mineira em 1981, sob o mandato de Virgílio Galassi. Em 17 de agosto de 1987, percebendo que os programas esportivos dominavam as rádios uberlandenses às 11 horas da manhã, inseriu na grade da Rádio Universitária FM o programa jornalístico “Informação ao vivo”, que condensava uma hora de debates e entrevistas. Disseram que o programa não passaria dos três meses de vida, mas, neste mês, com o nome “Trocando em Miúdos”, o programa completa 34 anos.

 

Veiculado de segunda-feira à sábado, das 11h às 12h, o programa discute, com profundidade, temas que variam da política ao comportamento.

 

Com 56 anos de carreira no rádio, Alvarenga acumula grandes entrevistas: além de Anselmo Duarte e Cacilda Becker, ele entrevistou Sócrates Brasileiro, Pelé, Roberto Marinho, Ulysses Guimarães, Camargo Guarnieri, João Saldanha e o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva (“Lula, vamos imaginar que você está andando pela Avenida Afonso Pena, que é uma das principais avenidas da cidade, e de repente você encontra caído na sarjeta o ministro Delfim Neto”, supôs Alvarenga na entrevista de 1982, durante o governo militar de João Figueiredo. “O que o senhor faria? O senhor pararia, estenderia a mão e levantaria o ministro? O senhor passaria reto fingindo que não viu? Ou o senhor pisaria na cabeça dele?”, perguntou. “Pisaria na cabeça dele”, respondeu Lula, à época).

 

Alvarenga entrevista Sócrates Brasileiro e Pelé, respectivamente. Foto: acervo pessoal.

 

Dentre todas essas e outras, a entrevista que mais marcou a vida de Márcio Alvarenga foi a que ele fez com o seu grande ídolo, o compositor italiano de trilhas sonoras Ennio Morricone, em 2008. Ela aconteceu no Teatro Alfa, em São Paulo, durante uma pausa de um minuto e meio no ensaio do concerto. “A emoção era tanta que eu quase perdi a voz”, conta Alvarenga. “Eu perguntei para ele como era o ato de compor e ele me deu uma resposta grosseira: ‘Eu sento e escrevo’”. Depois de um breve momento desconcertado, o jornalista se recompôs e conseguiu estabelecer um bom diálogo com o músico. A entrevista foi um sonho que se realizou. Nessa ocasião, Alvarenga deu a Morricone um exemplar do seu primeiro livro,  “Cinema, o Templo dos Sonhos”, com um capítulo dedicado ao compositor.

 

Alvarenga depois da entrevista com Ennio Morricone, em São Paulo, em 2008. Foto: acervo pessoal.

 

Literatura interartes

Caçula, muito da afeição de Márcio Alvarenga pela leitura e pela escrita adveio do seu irmão do meio. Dez anos mais velho que ele, Célio Manzi Alvarenga indicava livros para o irmão ler e depois pedia que a criança resumisse a obra, grifasse e anotasse as palavras que não conhecia, procurasse no dicionário os significados delas e as utilizasse em quatro frases para entender plenamente os sentidos das mesmas. “Tudo isso contribuiu para que eu ganhasse vocabulário e fluência e foi importante no processo de verbalização do pensamento e de construção do texto”, recorda o radialista.

O primeiro livro de Alvarenga nasceu em 2000. “Cinema: O Templo dos Sonhos” reúne alguns dos textos produzidos até aquele momento para o programa “Sétima Arte”, na Rádio Universitária FM. “Na época, não havia computador e toda produção do programa estava compactada em um calhamaço de folha sulfite”, relata Alvarenga. Ele, então, garimpou o material e formou o livro, que aborda nomes importantes no cinema, como Woody Allen, Marlon Brando, Charles Chaplin e, claro, Ennio Morricone.

O segundo livro veio somente dez anos depois. Dessa vez, “Trocando em Miúdos: Crônicas do Rádio” (2010) reunia 50 crônicas, gênero literário preferido de Alvarenga, sobre a trajetória dele nas rádios. Até então, o jornalista acumulava 45 anos de experiências e desejava compartilhá-las com as pessoas. “São tantas histórias, algumas hilárias, outras inacreditáveis, que eu pensei: eu tenho que colocar isso aqui num livro!”, conta ele. “As pessoas têm que tomar conhecimento dessas situações que são rigorosamente inusitadas”. As situações que envolveram as entrevistas de Alvarenga com Lula, Ennio Morricone e Camargo Guarnieri são apenas algumas das narradas no livro.

Os anos que sucederam a publicação de “Trocando em Miúdos: Crônicas do Rádio” foram profícuos para Alvarenga. Em 2011, ele lançou “25 anos do programa A Música no Cinema”, obra que retornava aos materiais de produção do programa “Sétima Arte”, que, desde 1996, passara a se chamar “A Música no Cinema”. Em 25 anos, haviam se acumulado 3.880 episódios apresentados e 232.800 minutos de música. Assim, as 101 trilhas mais executadas foram condensadas no livro, que abarca filmes como “Psicose” (1960), “O Poderoso Chefão” (1972) e “Forrest Gump - Contador de Histórias” (1994). “Meu objetivo era despertar o interesse de pessoas que não eram muito afeitas à música e ao filme”, discorre Alvarenga.

 

Os três primeiros livros publicados por Márcio Alvarenga. Foto: acervo pessoal.

 

Em 2013, foi a vez de “Meu Querido Intruso”, um dos livros mais pessoais do escritor. Ele contou a história do animal de estimação que teve, o poodle Billy, que falecera dois anos antes. Muito abalado com a ausência do cachorro, Alvarenga chegou à conclusão que a melhor maneira de processar o luto era falando e escrevendo a respeito dele. “O livro foi uma espécie de elaboração do luto”, reflete. Assim, em apenas uma semana, o escritor depositou nas páginas suas vivências e experiências ao lado de Billy. “Embora a produção do livro tenha sido difícil, esse processo foi extremamente terapêutico”, alega.

Ele relembra um momento ao lado de Billy: “Quando eu escrevo, eu sempre coloco uma música de fundo para ajudar na inspiração e na transpiração. E era interessante porque, quando eu colocava as músicas do Morricone, o Billy vinha e deitava nos meus pés. Aí eu fazia testes: se eu punha uma trilha completamente maluca, ele já levantava e saía”, recorda, rindo. Para Alvarenga, viver ao lado do cachorro foi “uma experiência muito gratificante e única”. Em “Meu Querido Intruso”, cada capítulo recebeu como nome o título de um filme, mais uma prova do amor de Alvarenga pelas telas.

Por fim, em 2014 veio o último livro publicado até agora: em “Os abutres têm fome”, Alvarenga critica o jornalismo policial, gênero que repudia. Ele defende que, contrariamente ao cinema, no qual o telespectador tem a consciência de que as cenas são fantasiosas, no jornalismo policial a violência é real e impactante. Assim, enquanto o cinema exorciza a violência, programas como “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente” a estimulam. “Na realidade, eu queria fazer uma crítica contundente a esse gênero, mas eu acabei pegando o cinema como gancho e falando sobre a questão do jornalismo canibal, que explora pela tragédia humana”, sintetiza.

 

Os dois últimos livros publicados por Márcio Alvarenga.

 

Há pelo menos 20 anos, Alvarenga segue disciplinarmente a rotina de escrever todas as manhãs. Raramente não tem inspiração. Normalmente, escreve sobre os filmes a que assistiu, os livros que leu ou algum acontecimento que o marcou. Quando se indigna, inspira-se na sistemática do jornalista e escritor Otto Lara Rezende. “Ele se deparava com determinado fato, colocava o papel na máquina, escrevia o texto e depois o guardava na gaveta. No dia seguinte, abria a gaveta e lia o texto. Se sentisse a mesma indignação da véspera, ele publicava o texto. Se não, rasgava o texto e jogava no lixo”, ensina Alvarenga. “No primeiro momento eu escrevo, às vezes com uma carga de ira e revolta muito grande. Se eu vejo que, no dia seguinte à escrita do texto, eu mudei a minha forma de pensar, eu deleto”.

O próximo livro do jornalista está pronto há dois anos e só não foi publicado por conta da pandemia de Covid-19. “Contatos imediatos com a eternidade” reúne entrevistas de Alvarenga com 100 personalidades. Entretanto, o que diferencia esse livro de outros é que, em “Contatos”, existem entrevistas reais e fictícias. Assim, há registro de entrevistas marcantes que Alvarenga fez (com Sócrates Brasileiro, o jogador de futebol, por exemplo) e o registro de entrevistas que ele gostaria de ter feito (como com Sócrates, o filósofo ateniense).

No caso das entrevistas imaginárias, a sistemática de Alvarenga foi a seguinte: ele elaborava uma pergunta e procurava, em algum momento da História ou nas obras do entrevistado em questão, a resposta que o mesmo teria dado. Foi assim que o jornalista entrevistou não somente Sócrates, mas Machado de Assis, Lima Barreto e Pablo Neruda. “São entrevistas imaginárias que apesar de serem fictícias são reais”, resume. A previsão é que o livro seja lançado em 2021.

Com 70 anos de idade, 56 deles dedicados à vida profissional, Alvarenga continua trabalhando ativamente na Rádio Universitária FM, com os programas “Trocando em Miúdos” e “A Música no Cinema”. Se lhe falam de aposentadoria, ele adia a conversa. “O trabalho me diverte porque eu gosto daquilo que eu faço”, reflete o radialista, que alterna o tempo entre escritas, entrevistas e filmes. Assim, os seus cineastas, músicos e escritores favoritos, além do compromisso com o jornalismo de qualidade e a análise criteriosa de filmes e trilhas sonoras, continuam a transformá-lo num eterno aprendiz e num eterno professor. Sorte de quem o escuta.

 

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