Publicado em 19/01/2023 às 13:06 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:39
O ensino decolonial se propõe a repensar na forma como o conhecimento é transmitido. (Foto: Freepik)
Em 2023, a Lei 10.639/03 completou 20 anos. Resultado de uma luta histórica do movimento negro, a lei busca incentivar a valorização da diversidade cultural africana e afro-brasileira na educação ao garantir que as escolas incorporem esses temas em seus projetos pedagógicos.
A lei é uma das primeiras ações estabelecidas com o objetivo de romper o racismo estrutural e construir uma educação anti-racista nas escolas brasileiras. Estudar a história da África e a cultura afro-brasileira expande a visão da identidade do Brasil e do conhecimento do povo acerca de suas raízes e de si mesmo.
De acordo com a professora do Instituto de História (Inhis) e do Mestrado Profissional em História (ProfHistória) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Ivete Batista da Silva Almeida, a maioria do aparato conceitual utilizado nas Américas e em outros países da África e Ásia vem do norte global. Essas referências eram consideradas tão importantes que a história da Europa e da América do Norte são profundamente estudadas nos países que passaram pela colonização, enquanto os acontecimentos próprios do seu povo não recebem a mesma atenção.
“Essa aproximação e dependência dos conceitos e ponto de vista do norte global, essa dependência em relação à produção acadêmica e de conhecimento, é uma herança da colonialidade”, afirma. Dessa forma, os países que foram colônias continuam utilizando a história e conhecimento produzidos pelo antigo colonizador como referência.
Isso pode ser notado quando percebe-se que a história estudada nesses países inicia-se com a chegada dos colonizadores. Para combater isso, há o movimento de ensino decolonial, que busca romper com a colonialidade.
Para entender a relação entre a educação e a história do Brasil, é necessário compreender a diferença entre os termos colonialidade e colonialismo. O primeiro refere-se à permanência da estrutura do poder colonial até o mundo contemporâneo. Já o segundo aborda o vínculo de dominação social, política e cultural que os povos europeus exerceram sobre outros ao redor do mundo.
Assim, a decolonialidade é a busca por romper com a continuidade do poder colonial e da estrutura criada por ele. Já a descolonialidade está ligada às lutas das antigas colônias por independência, buscando superar o colonialismo e a opressão.
O movimento é fruto da visão pós-colonial, surgida em torno da década de 1950. Nele, o mundo é pensado sem o colonizador. “Vem o movimento de começar a se separar desses paradigmas e construir um novo ponto de vista, de nos despir dessa colonialidade, que está impregnada em uma série de coisas que nós fazemos, principalmente no ensino”, aponta a professora.
Esse impacto vai também para as outras áreas de conhecimento. A bibliografia dos cursos e das disciplinas se pautam majoritariamente em pensadores europeus, enviesando a interpretação de mundo. Nesse cenário, Almeida destaca que não se trata de esquecer ou desistir de abordar os pensadores clássicos, mas sim de dar mais atenção ao que outros países que passaram por processos parecidos com o do Brasil constroem enquanto conhecimento.
“O ensino decolonial vem para deixar para trás o capítulo da educação voltada para os princípios e conceitos eurocêntricos e voltar os olhos para as nossas temáticas a partir dos referenciais do sul global", afirma.
Construindo profissionais decoloniais
A professora Ivete Almeida afirma que o ensino decolonial acompanha a proposta de dar um destaque maior ao povo do sul global. (Foto: Marco Cavalcanti)
“Todas as ciências devem olhar para questões ligadas à nossa vivência”. Com essa frase de Ivete Almeida, um questionamento foi levantado: é possível que outras profissões, além das envolvidas com o ensino, sejam decoloniais?
Para a professora, a resposta é sim. E ainda vem acompanhado de uma história para exemplificar:
“Nós tivemos um estagiário [no Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché], o Mateus, que era do curso de Fisioterapia. Na entrevista, eu perguntei ‘Mateus, por que você quer ser estagiário da Casa Graça do Aché, se faz Fisioterapia?’ e ele respondeu ‘eu quero entender a cultura e os valores das pessoas que eu vou atender no futuro’. Então, eu acho que é isso.”
Ivete Almeida reforça que, ainda na universidade, muitos cursos se pautam em aprender a partir de pesquisadores europeus. Assim, os profissionais têm amplo conhecimento sobre a história, cultura e comportamento de outros povos que, na maioria das vezes, é bem diferente do que se vê no Brasil. “Existem vários motivos para isso ter acontecido, mas eu não tiro a nossa parcelinha de culpa ao ter uma educação alienante”, completa.
'Ensino de história na perspectiva decolonial'
Capa do livro organizado. (Arte: Reprodução)
A partir de todas essas reflexões, a professor Ivete Almeida, juntamente com o professor doutor Florisvaldo Paulo Ribeiro Junior, resolveram organizar a coletânea de "Ensino de História em perspectiva decolonial". Ambos são professores do ProfHistória e decidiram reunir resultados parciais das investigações científicas desenvolvidas por pesquisadores e pesquisadoras em conjunto com seus orientandos, orientandas e grupos de pesquisa.
“Essa é a reflexão que temos tido: o ensino de história é muito eurocêntrico. E nós precisamos romper com isso”, aconselha Almeida. A professora afirma que a temática pode permanecer. Porém, o desejo é ampliar a lista bibliográfica utilizada, dando mais atenção a pesquisadores e pesquisadoras do sul global. Assim, o livro tem nove capítulos divididos em duas partes: "História, política, salas de aula" e "Subjetividades diaspóricas: emergência decolonial".
A proposta é levantar problemáticas e possíveis resoluções por meio de pesquisas, análises críticas e relatos de experiências. “É um material para orientar. Não só para usar, mas também para fomentar questionamentos e soluções”, aponta. O e-book é gratuito e já está disponível no site da Editora Oikos.
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Palavras-chave: Ensino decolonial ProfHistória livro
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