Publicado em 27/04/2023 às 10:58 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:38
Imagem: Freepik
Família, Saúde e Transexualidade
Não é a mesma camada social, não é a mesma idade
Mesmo com tantas diferenças, todas têm significado
De proteção, de abandono, de projeto... vejam só que achado!
Falar de família é falar de amor
É falar de sangue e, também, de dor
Ainda assim, eu quero sim
Aquela família perfeita, todinha para mim
Na família há quem rejeite
Há quem não aceite
E tudo o que eu preciso para ser
É me sentir protegido(a), é pertencer
Há também quem ajude
Mesmo que eu muito mude
São pessoas a me apoiar
Para que eu possa me transformar
Na família ainda me chamam pelo nome de quem já morreu
É minha família, então tenho que compreender
Afinal, para eles, aquele(a) também já fui eu
Já perdi tanto na vida, tenho que a família também perder?
Apoiar é diferente de aceitar
Vai além da simples obrigação
De não abandonar, de não prejudicar
É ficar ao meu lado e comigo lutar
É bem mais que aceitação
Quando penso no futuro, assim como quem nada quer
Desejo uma família, uma pessoa ao meu lado, um casamento
Ter filho homem, ter filha mulher
Para sair desse tormento
Para da violência escapar
Tenho que me encaixar
O máximo que puder
Naquilo que você de mim quer
Quando era criança, parecia uma confusão
Me diziam para eu brincar disso e daquilo não
E quando eu, da sua vontade, fazia negação
Me batiam, me julgavam, e para mim, não havia perdão
Quis fugir, quis morrer, quis matar
Apanhei, adoeci, sofri
E se desse destino consigo escapar
Lhe peço ajuda, agora, aqui
Como pai e mãe, tive muito medo
De alguém descobrir esse segredo
De julgar e ser julgado
De ver meu filho abandonado
No início não sabia nem como explicar
E talvez até hoje não possa eu
Sinto culpa a me matar
Esse remorso também é meu
Vi minha família desmoronar
Os sonhos que eu tinha, estão a ruir
Quero que essa dor comece a acabar
Antes que eu pense em daqui fugir
Meu filho não existe mais
Minha filha morreu
Como enfrentar esse luto em paz
Se agora outra pessoa em meu lar nasceu?
Quero brigar, quero chorar
Quero cuidar, quero abraçar
E que vocês que estudaram possam me ajudar
A esse problema consertar
Uma identidade expressar
É um sonho de sobrevivência
É assumir a aparência
Para que possam me aceitar
No caminho também há decepção
Até mesmo com quem parecia me cuidar
Não é fácil essa transformação
Ninguém quer nos ver mudar
Ter uma família, é ter saúde
É ter alguém que te ajude
Com ou sem doença
Sem se preocupar com aparência
Se sou negro, se sou pobre
Há pouco que a mim sobre
Saúde é não adoecer
Para poder trabalhar, poder sobreviver
Se sou branco, se sou rico
Cada vez melhor fico
Saúde é bem-estar
É viver bem, é se aceitar
Se não encontro na família esse ideal
Como o serviço de saúde não há igual
A pergunta que não quer calar
É se, na saúde, só esse pode ser meu lugar?
Nos serviços, ainda muito a aprender
Não me chamam pelo meu nome, não posso adoecer
Como então ter saúde, ter cuidado
Se não passo da porta, se meu acesso é bloqueado?
A saída parece estar na Educação
Precisamos de conhecimento, de (in)formação
Quem sabe se começarem a nos conhecer
Possam um dia também nos apoiar e entender?
A Política Pública precisa deixar de ser simples texto
E se articular com cada serviço, cada contexto
É preciso dialogar, avaliar, acompanhar
Para que esse texto possa as realidades transformar
No futuro quero tudo de melhor
Que a minha família possa me aceitar
Que no serviço de saúde eu possa me transformar
Para sair na rua, viver em paz, sem medo de caminhar
Para meu filho quero alegria
Ainda que eu tenha muito medo
Para minha filha de felicidade eu gostaria
(Não) quero que isso seja um segredo
Uma complexa discussão
Que vai além da intelectualidade
E toca também no coração
Na tentativa ingênua e esperançosa
De ver poesia na ciência
Fazer uma análise mais prazerosa
Que possa ser também verso e prosa
Que essa pesquisa consiga pelo menos uma vez
Atravessar os muros, ir além da academia
Alcançar as pessoas que, talvez
Vivam isso todo dia
Longe de mim querer
Por você me passar
Esses versos não são uma tentativa de você ser
Mas sim, minha tentativa de você me aproximar
E, quem sabe assim,
Ver que para você e para mim
É possível escrever e expressar
É possível sonhar e lutar
Para um dia transformar
O que hoje só parece doer, só parece fazer chorar
*Danilo Borges Paulino é professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (Famed/UFU). A sua tese de doutorado, intitulada “A família e a dinâmica de suas relações no cuidado em saúde de transexuais”, está disponível no Repositório da Universidade de São Paulo (USP).
A seção "Leia Cientistas" reúne textos de divulgação científica escritos por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São produzidos por professores, técnicos e/ou estudantes de diferentes áreas do conhecimento. A publicação é feita pela Divisão de Divulgação Científica da Diretoria de Comunicação Social (Dirco/UFU), mas os textos são de responsabilidade do(s) autor(es) e não representam, necessariamente, a opinião da UFU e/ou da Dirco. Quer enviar seu texto? Acesse: www.comunica.ufu.br/divulgacao. Se você já enviou o seu texto, aguarde que ele deve ser publicado nos próximos dias.
Palavras-chave: Leia Cientistas Transexualidade Medicina saúde
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