Publicado em 28/02/2025 às 17:18 - Atualizado em 05/03/2025 às 14:52
Quem é brasileiro sabe que o Carnaval é mais do que uma festa em nosso país. Aqui, o Carnaval é um marcador temporal, algumas pessoas chegam mesmo a afirmar que, no Brasil, o ano só começa depois do Carnaval. Sendo tão presente em nosso cotidiano, o Carnaval nos parece tipicamente brasileiro, mesmo tendo origens distantes de nós no tempo e no espaço. Mas afinal, o Carnaval é uma festa brasileira ou importada?
O Carnaval é uma festa que chegou até nós por meio do calendário de festividades cristãs, que herdamos com a colonização, ele é uma das festas mais populares do mundo e, de fato, tem origens que remontam à antiguidade. Mas, em se tratando de História, há sempre que se considerar a existência de continuidades e rupturas, ou seja, embora perdurem aparentemente por séculos, as coisas nem sempre continuam sendo exatamente aquilo que foram no passado, muitas vezes, ganham novos sentidos.
As origens do Carnaval
O Carnaval tem raízes em festividades pagãs da Antiguidade, especialmente em celebrações na Mesopotâmia, na Grécia e em Roma. No Egito Antigo, por exemplo, festivais dedicados ao deus Osíris incluíam procissões e festejos populares. Já na Grécia, as festas dionisíacas, em honra ao deus do vinho Dionísio, eram marcadas por danças, música e excessos. Em Roma, as Saturnais, ou Saturnálias, eram realizadas em homenagem ao deus Saturno, envolviam a suspensão temporária de hierarquias sociais, permitindo que escravos e cidadãos livres se misturassem em uma atmosfera de inversão de papéis, diversão e liberdade.
Com a ascensão do cristianismo, a Igreja adaptou essas festividades pré-cristãs ao calendário religioso. Dessa forma, o Carnaval passaria a ser celebrado antes da Quaresma, período de 40 dias de jejum e penitência que antecede a Páscoa do calendário cristão. Nesse contexto, os excessos do Carnaval eram uma espécie de despedida dos prazeres mundanos antes da reflexão religiosa.
Durante o Renascimento na Europa, no período do Carnaval, a população de cidades como Veneza protagonizava brincadeiras, banquetes e desfiles mascarados. Os bailes de máscaras, que se tornaram populares principalmente em Veneza, eram um exemplo dessa tradição.
Além dos bailes, na Itália, os cortejos alegóricos e as brincadeiras com pessoas mascaradas tornaram-se elementos centrais da celebração. Já na França, os desfiles e os bailes eram comuns entre a nobreza, enquanto na Espanha e em Portugal, as festividades carnavalescas incluíam danças populares e representações teatrais.
Com esse passeio pelo Carnaval na antiguidade e na Europa renascentista, nosso objetivo foi demonstrar que, embora entre os europeus as formas de brincar o Carnaval eram relativamente diversas, envolvendo tanto as ruas com a participação popular, quanto nos ambientes fechados para os bailes da nobreza, a temática, por sua vez era a mesma: festejar os prazeres mundanos, antes da chegada dos quarenta dias de penitência.
Todavia, ao chegar no Brasil, o Carnaval adquire um aspecto único, que diferencia o Carnaval do Brasil dos carnavais de outras partes do mundo. O Carnaval brasileiro é uma celebração que, além das brincadeiras de rua e salão, celebra a memória, a história e as identidades, como afirma Rodrigo Muniz F. Nogueira em O Carnaval como uma peça da construção identitária brasileira.
Carnaval no Brasil
É com as invasões europeias ao continente americano e o estabelecimento da sociedade colonial que o Carnaval, assim como as línguas e costumes dos colonizadores, chega à América. No Brasil, a história do Carnaval começa no século XVII com o "Entrudo", uma festa de origem portuguesa marcada por brincadeiras ruidosas, arremesso de água e farinha entre os foliões.
É no século XIX, contudo, que o Carnaval brasileiro começaria a ganhar novas características, assim, marcados pelos ritmos africanos trazidos pelos escravizados, surgiram os primeiros cordões e blocos carnavalescos, dando origem ao que conhecemos hoje como o Carnaval de rua e, posteriormente, as escolas de samba. O surgimento do Carnaval de rua, com seus batuques, cantos e ritmos da população negra (escravizada, forra e liberta), é elemento fundamental para que se possa compreender a originalidade do Carnaval brasileiro, pois o Carnaval de rua nasce a partir de uma identidade popular e negra.
Enquanto o povo tomava as ruas, as elites brasileiras brincavam o Carnaval no final do século XIX e início do século XX por meio do Corso. O corso consistia na realização de passeios de carruagens enfeitadas, onde os foliões jogavam confetes e serpentinas enquanto desfilavam pelas ruas das cidades, especialmente no Rio de Janeiro. Essa prática, iria contribuir para a tradição dos bailes e concursos de fantasias e máscaras, presentes nos carnavais das elites ainda hoje.
Mas o nosso objetivo é entender o que há de original e único no Carnaval brasileiro, e para isso, temos que observar não o Carnaval das elites, mas o Carnaval popular, das ruas.
O Surgimento das Escolas de Samba
Enquanto o Corso e os bailes eram apreciados pelas elites, as camadas populares, especialmente as de origem africana e afrodescendente, desenvolviam suas próprias formas de festejar o Carnaval. No início do século XX, os ranchos e blocos Carnavalescos começaram a surgir nas ruas, trazendo a musicalidade, o humor e os referenciais identitários das culturas afro-brasileiras. Foi nesse contexto que, em 1928, nasceu a primeira escola de samba do Brasil: a Deixa Falar, fundada no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, por sambistas como Ismael Silva. Interessante observar que a expressão "escola de samba" surgiu como uma referência ao fato de que os integrantes precisariam aprender muitas coisas para brincar esse Carnaval cheio de complexidade cênica, dessa forma, os brincantes precisariam aprender uns com os outros desde as coreografias dos passos, até mesmo a história do enredo e a letra do samba.
Assim, nascia no Brasil um Carnaval muito original, e marcadamente, negro. Os ranchos e blocos introduziram uma novidade que seria seguida pelas escolas de samba, que era a escolha de um tema, um enredo para a sua apresentação. Com fantasias e músicas que se remetiam a um tema do cotidiano ou da memória das comunidades afrodescendentes, os ranchos saíam às ruas para celebrar a cultura negra e a cultura popular. Nenhum Carnaval, seja na Europa ou no continente americano possui essa particularidade de tomar as ruas para cantar e dançar, rir e brincar a partir da celebração da memória, história e identidade da cultural de um povo.
As raízes das escolas de samba remontam ainda às rodas de samba organizadas nas comunidades negras do Rio de Janeiro. No final do século XIX e início do XX, o samba, que nasceu da fusão de ritmos africanos e influências europeias, passou a se consolidar como expressão musical das camadas populares. Foi nesse contexto que grupos começaram a se organizar para desfilar durante o Carnaval, formando os primeiros blocos e ranchos carnavalescos.
Entre o final dos anos de 1920 e o início dos anos de 1930, várias outras escolas de samba surgiram, ligadas a diferentes comunidades negras do Rio de Janeiro. Mas segundo Natacha Franciele Silva, em sua pesquisa sobre o carnaval no Rio de Janeiro, teria sido em 1932 que o Jornal Mundo Esportivo num momento de poucas novidades na redação, decidiu fazer uma entrevista com os presidentes das escolas atuantes naquele ano. E teria sido a partir desta entrevista que surgiria a ideia de convidar as escolas de samba para uma competição onde a melhor apresentação ganharia o título de vencedora do desfile. Com o patrocínio do jornal, o primeiro desfile das escolas de samba aconteceu no dia 7 de fevereiro de 1932 na praça Onze de Julho e contou com a inscrição de dezenove escolas de samba, dentre elas a tríade carnavalesca: Deixa falar (rebatizada como Grêmio Recreativo Escola de Samba Estácio de Sá), Estação Primeira de Mangueira e Conjunto Carnavalesco de Oswaldo Cruz (atualmente conhecida como Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela).
Fundamental entendermos que, o Carnaval brasileiro, possui diferentes formas de se manifestar esteticamente, como explica Hugo Menezes Neto em Gilberto Freyre entre o frevo e o samba no Carnaval do Recife. Dessa forma, o frevo, os trios elétricos e os bonecos gigantes do Nordeste, assim como as escolas de samba do Sudeste, diferem dos carnavais de outras partes do mundo e se tornam únicos por sua estética. As técnicas e as formas de ocupação das ruas, a organização regrada e orientada das alas, a seleção de temas ligados à história recente do cotidiano das massas, bem como a celebração da ancestralidade e da memória ancestral, permitiu a construção do que por muito tempo a imprensa chamou, sem exageros, de o “maior espetáculo da Terra”.
No caso específico das escolas de samba, o volume de conhecimento necessário para transformar um enredo em desfile é monumental. Desde pesquisas históricas, para a composição do Livro Abre Alas, ao desenvolvimento de mecanismos que permitam a mobilidade dos carros alegóricos, à composição harmônica de fantasias e adereços, mobilizam artistas e artesãos profissionais e amadores das comunidades negras. Além disso, o coração da escola, ou seja, a bateria, deve ser entendido como uma verdadeira orquestra de percussão, na qual centenas de músicos, tocando juntos, precisam manter a atenção e o ritmo, enquanto estão em movimento!!! Vocês já haviam pensado nisso? Imaginem uma orquestra sinfônica tocando enquanto anda. Seria difícil? Sim, e muito, mas é exatamente assim que os músicos das baterias de escolas de sambas realizam suas evoluções.
O Carnaval Brasileiro entre os Anos de 1970 e 1990
A partir da década de 1970, o Carnaval brasileiro começou a se consolidar como espetáculo que atraía a atenção do mundo. Foi nesse período que o evento passou a ser transmitido ao vivo pela televisão, ampliando sua visibilidade nacional e internacional. O impacto midiático levou a um crescimento exponencial na produção e no investimento das escolas de samba, que passaram a contar com patrocínios e apoio de grandes empresas.
Durante os anos 1980, a profissionalização dos desfiles se intensificou. A criação do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, inaugurado em 1984 e projetado por Oscar Niemeyer, marcou uma revolução na organização do evento. O espaço permitiu maior planejamento para os desfiles e consolidou o Carnaval carioca como referência global.
Em São Paulo, a década de 1990 viu o fortalecimento das escolas de samba, com a inauguração do Sambódromo do Anhembi em 1991. O crescimento da festa paulista garantiu ainda mais espaço para a cultura do samba-enredo e consolidou a cidade como um importante polo carnavalesco.
Se desde o seu surgimento as escolas de samba traziam para a avenida a evolução de temas ligados à história e à memória popular e, sobretudo, afro-brasileira, a partir dos anos 90, os enredos políticos e sociais começaram a ganhar destaque, com escolas abordando temas como desigualdade, resistência negra e questões ambientais. As composições musicais também se tornaram mais sofisticadas, com sambas-enredo marcantes e inesquecíveis.
A intolerância religiosa no Carnaval: Um problema persistente
Com a redemocratização do Brasil e, principalmente, a partir da promulgação da Constituição de 1988, além dos temas políticos, os temas ligados às religiosidades de matrizes africanas também passam a ser celebrados pelas escolas de samba e é nesse momento que, embora o Carnaval brasileiro de rua busque a inclusão, a festa acabou se tornando palco de episódios de intolerância religiosa. Reativos ao direito de visibilidade das pessoas negras, que colocam com orgulho sua história e suas crenças de maneira democrática na avenida, grupos que defendem a intolerância e o fundamentalismo, passaram a criticar e até mesmo a atacar galpões de escolas de samba, na tentativa de impedir que essas pessoas celebrem as suas crenças. Em um país como o Brasil, onde a maioria da população é afrodescendente, o preconceito e a discriminação racial e religiosa são práticas inadmissíveis.
Se o Carnaval brasileiro tem a narrativa sobre temas da cultura e da memória como marcador que o diferencia, é importante entender que as temáticas ligadas às religiões afro-brasileiras, estarão presentes nessa celebração de histórias e identidades negras. Muitos blocos e escolas de samba fazem referências a orixás, rituais e símbolos dessas tradições, celebrando a ancestralidade e a presença africana na cultura nacional.
Como citado, a intolerância religiosa pode se manifestar de diferentes formas durante o Carnaval. Há casos de destruição de alegorias que fazem referência a religiões afro-brasileiras, discursos de ódio em redes sociais e até ataques físicos a praticantes dessas crenças. Esse preconceito reflete um problema estrutural da sociedade brasileira, que ainda carrega resquícios do colonialismo e do racismo religioso.
Outro fator que contribui para a intolerância religiosa no Carnaval é o discurso moralizador de certos grupos que enxergam a festa como um período de libertinagem e desordem. Isso alimenta narrativas que demonizam as expressões culturais e espirituais associadas a religiões de matriz africana. Essa visão ignora o caráter histórico e social do Carnaval, reduzindo-o a uma celebração sem significado cultural ou artístico.
Além disso, discursos fundamentalistas muitas vezes relacionam os rituais afro-brasileiros à ideia de "feitiçaria" ou "culto ao demônio", o que fomenta ainda mais a desinformação e o preconceito. Esse tipo de retórica reforça a marginalização dessas religiões e de seus praticantes, tornando o combate à intolerância religiosa ainda mais desafiador e necessário, pois se o nosso Carnaval é único, ele o é, exatamente por ter se tornado essa arena popular para a celebração de nossas histórias, memórias e valores identitários.
Embora as escolas de samba tenham se tornado um grande referencial identitário para o Carnaval brasileiro, o frevo, os trios elétricos, maracatus e bonecos gigantes do Nordeste, reúnem igualmente milhares de pessoas nas ruas, celebrando nossa história e nossa identidade afro-indígena.
Nosso Carnaval, assim como nossa história, é composto por um repertório cultural riquíssimo. Apesar da intolerância e do pouco apoio do poder público, o Carnaval das escolas de samba, blocos e trios elétricos segue forte. Além de ser um espaço de festa e brincadeira, ele se tornou o palco da genialidade e beleza da cultura afro-brasileira.
*Ivete Almeida é professora doutora pela USP, docente dos programas de Graduação e de Pós-graduação em Ensino de História da Universidade Federal de Uberlândia.
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Palavras-chave: carnaval cultura Brasil história
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