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Equidade

"Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela" (Ângela Davis)

“Nós somos a epítome de todas as questões transversais da nossa sociedade (Ivete Almeida)

Publicado em 03/12/2025 às 16:21 - Atualizado em 03/12/2025 às 17:06

Foto: Milton Santos

 

“Quando a gente está falando de mulher preta, a gente realmente está falando da base da sociedade. As pessoas pretas no Brasil são a maior parte da população. Somos nós que estamos cuidando das casas, das famílias, das crianças, das pessoas, da manutenção dos espaços. E somos nós, também, que estamos brigando por outros espaços. Então, realmente, as mulheres negras estão na base dessa sociedade e elas acabam representando muito, as mazelas da nossa sociedade”. A afirmação é da professora do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (Inhis/UFU) e coordenadora do equipamento cultural, Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché, Ivete Almeida. Foi com ela  que  conversarmos um pouco sobre a mulher negra na sociedade brasileira. Uma sociedade que segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), as populações preta e parda totalizam mais de 112 milhões de pessoas, representando 55,5% do total.

De acordo com Ivete Almeida, em contrapartida, os movimentos negros começaram cedo, mas ainda faltam políticas públicas ou ações que possam mudar esta realidade. “Aqui no Brasil a gente teve, historicamente, a formação do movimento negro que foi sendo gestado. Desde o período escravista já existiam movimentações de pessoas negras abolicionistas, de pessoas negras pela melhoria da vida, de pessoas negras livres, libertas, pela alfabetização, enfim, então é um movimento muito antigo, mas foi a partir da Constituição de 1988 que esse movimento se consolida e ganha visibilidade. E você imagina, Eliane, que mesmo dentro do movimento negro, as pautas das mulheres negras não eram privilegiadas, por isso, a gente tem um movimento de mulheres negras, o feminismo negro. E, mesmo dentro do movimento negro, essas pautas das mulheres negras, são pouco levantadas. Então, muitas vezes, eu vou conversar com alunos ou pessoas da comunidade externa e, quando a gente fala dessa questão, do assédio moral, da aparência da mulher negra, do cabelo, aí sempre tem alguém que fala: ‘Ah, vai falar de novo desse negócio de cabelo’. Mas não é um negócio de cabelo, são micro violências que as mulheres sofrem a vida toda e que essas pautas não eram valorizadas, eram consideradas questões menores. [...] Então, você me pergunta: O que existe, para valorização? Sobretudo o feminismo negro. Então, intelectuais como Sueli Carneiro, Janila Ribeiro trazem essa pauta, dessas necessidades das mulheres. Hoje, a gente tem uma bancada negra no congresso que tem se mostrado sensível a essas pautas e têm sido sensíveis  às questões que envolvem as mulheres negras, em relação a trabalho, ao assédio e a questão social.

 

Foto da professora Ivete Almeida
"É fundamental que a sociedade consiga olhar para essas particularidades das vivências das mulheres negras e entender que não, não são bobagens" Ivete Almeida - Foto Letícia Defendi

 

Escolarização

Sobre o processo de escolarização, segundo Ivete, a mulher preta passa por um processo denominado funil. “É difícil a mulher preta completar o processo de escolarização, porque as mulheres pretas, historicamente, são vistas dentro das famílias como aquelas que têm que cuidar dos pais, dos avós, do irmãozinho. Mesmo famílias de classe média baixa, se tem uma adolescente, é ela que tem que cuidar, porque existe associação da figura da mulher preta com o cuidado. Então, é difícil ela completar a escolarização, é difícil ela completar a formação superior e, uma vez completada a formação superior, é difícil assumir cargos relevantes no mercado de trabalho e, mais difícil, assumir um cargo de comando”, reforça. Almeida comenta, ainda, que só agora presenciamos a mulher preta em algumas posições de destaque, “Estamos vendo agora, a primeira mulher preta imortal, primeira mulher preta em determinado lugar de destaque, no judiciário, vai ter uma aqui, uma ali, outra lá, sendo que nós somos mais da metade da população”.

 

“Ainda há muita resistência”

Segundo Ivete Almeida, a resistência é percebida dentro dos diversos ambientes. “Sempre que ministro palestra, encontro muita resistência entre as pessoas da sociedade com relação as ações afirmativas, porque elas veem como um privilégio. É difícil entender o que é equidade. Eles dizem assim: ‘Não, tem que ser igual para todos, mas não tá igual’. As pessoas não tiveram as mesmas condições. E se são cidadãos, precisam ter as mesmas condições de acesso. Então, hoje se discute muito a permanência do estudante na universidade. Então, não adianta você ter a cota, colocar o estudante aqui dentro, mas é um estudante vulnerável. É um estudante que tem que trabalhar, que mora longe, tem que cuidar dos pais.  Desta forma é fundamental que a sociedade consiga olhar para essas particularidades das vivências das mulheres negras e entender que não, não são bobagens. Não são situações particulares, são questões sócio-históricas e que impedem, que as mulheres negras realmente consigam desenvolver o seu potencial, ou porque elas são barradas por suas situações familiares ou econômicas, ou mesmo de preconceito, né?”

E quando a mulher preta se posiciona? Para a professora, quando isso acontece,  “as pessoas reagem, entendem a atitude dela como alguém que está saindo do seu lugar. E é muito importante a gente não ver isso como uma bobagem. O assédio moral não é uma bobagem. A marginalização no atendimento médico não é uma bobagem. Então, por exemplo, existe esse estereótipo, a mulher preta periférica é barraqueira. Por que essa mulher tem que gritar para ser atendida?  Por que tem que dar um escândalo? Porque não foi atendida no tempo certo, da forma correta? Será que ela está sendo ouvida? Será que  muitas delas não estão sendo levadas a perder a paciência? Então, nós não estamos sendo ouvidas”.

Neste contexto, a professora lembra de situações que enfrentou como mulher negra. “Quando eu fui ter minha filha, na minha primeira gestação, eu dizia que estava sentindo muita dor e a enfermeira dizia: 'Aí, calma, olha, você vai assustar as outras parturientes, você não pode falar assim'. E eu passei horas sentindo muita, muita, dor, aí diagnosticaram que o bebê tinha enovelado o cordão, que o bebê realmente não ia sair. Então eu realmente estava em sofrimento, fiquei 12 horas em sofrimento. Então isso é muito frequente, não somos ouvidas”.

Em outro momento, em um ambiente universitário, a professora conta que viveu um episódio, durante uma reunião, que demonstrou o racismo estrutural da sociedade. “Era uma reunião que trataria de assuntos de mulheres. A pessoa que iria presidir a reunião falou: ‘vamos nos apresentar’. Ela apontou para cada uma e pediu que se apresentasse. Quando apontou para mim e falou: ‘E você, você está aqui por quê?’, ou seja, ela viu uma mulher preta, obviamente, já nem chamou de professora. Eu falei: Estou aqui, porque eu sou uma das professoras que foi chamada, embora pelo jeito não pareça, aos seus olhos’. Mas, é isso, então, são essas microviolências”.

 

O Discurso seria vitimista?

Perguntada se esse discurso, da pessoa preta, pode soar como vitimismo, a professora afirma: “ É um  discurso realista. A gente tem que olhar a realidade como ela é. Até mesmo porque o nosso objetivo não é lamentar-nos. Eu acho que seria vitimista se o nosso objetivo final, fosse só a lamentação, apontar culpados e nem de longe é esse o nosso objetivo. O nosso objetivo é olharmos para os problemas, olharmos para aqueles que estão causando problemas, olharmos para as leis que nos protegem, exigirmos que essas leis sejam cumpridas, ocuparmos os espaços que são de direito nosso. É esse o nosso objetivo, é a luta pelos nossos direitos e a conquista do nosso espaço de cidadania. Então, de forma nenhuma o nosso objetivo é só a lamentação. Quem acha que é isso, não entendeu o que é o movimento negro, nem o feminismo negro. O objetivo é que a gente realmente consiga fazer com que essa grande parte da população acesse os seus direitos e tenha os seus problemas atendidos, porque faz parte do nosso direito de cidadania. Então, sim, nós temos que fazer com que as pessoas entendam quais são os problemas que estamos vivenciando, que não queremos continuar vivenciando isso. Porque temos o direito de exigirmos reconhecimento,  escuta e solução para esses problemas. Não é no sentido de lamentação, mas no sentido de proposição”, complementa.

 

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Palavras-chave: Mulher Negra

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