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Leia Cientistas

Biodireito e Direitos Humanos

‘A crise que o mundo atravessa não é a crise do coronavírus’

Publicado em 24/08/2020 às 19:58 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52

‘A escolha de pessoas passíveis de tratamento não se justifica’. (Foto: Heudes Regis/Fotos Públicas)

 

A relação entre o biodireito e direitos humanos nunca foi tão evidente no Brasil e no mundo devido à pandemia. Entretanto, entendo que a necessidade de se estabelecer essa relação sempre existiu e não se deve apenas ao momento crítico que o mundo enfrenta.

A relação do biodireito com os direitos humanos decorre da dignidade humana, com a proteção ao direito à vida, que está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, nos Tratados Internacionais de proteção aos direitos humanos, bem como na Constituição brasileira de 1988.

O direito à vida, portanto, é um direito humano e um direito fundamental. Direito humano, pois têm previsão dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e, direito fundamental, pois tem proteção constitucional.

É importante destacar que, no âmbito internacional, o direito à vida também está previsto no artigo 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, documento ratificado pelo Brasil que provém do sistema regional internacional ao qual o Brasil se vincula.

No âmbito do ordenamento jurídico doméstico, o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 instituiu a dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, regulando, também, em seu artigo 5º, o direito à vida.

Como ramo da ciência jurídica que se destina a regular as relações humanas com as técnicas de manipulação da vida, o biodireito se revela como um ramo indispensável a todo ordenamento jurídico fundado na democracia, na pluralidade e na defesa dos direitos fundamentais. Nesse sentido, é possível definir o biodireito como o ramo da ciência jurídica que regula o direito à vida, a fim de conciliar os avanços biotecnológicos com o princípio da dignidade humana.

Além disso, o biodireito também se relaciona com a bioética, que é a ciência que se destina a fornecer o conteúdo ético para que o ser humano seja tratado com dignidade diante das técnicas científicas que dizem respeito à vida, como reprodução humana assistida, experimentações científicas, clonagem, terapia gênica, dentre outras.

O biodireito também tem intrínseca relação com a filosofia do direito, como ciência do conhecimento, que busca estabelecer os limites do conhecimento, o que é possível conhecer e como conhecer.

Assim, o objeto do conhecimento, biodireito, pode receber a influência do pensamento Kantiano, que considera o ser humano um fim em si mesmo, que não é passível de coisificação e que não pode ser instrumentalizado. Referido posicionamento filosófico levaria a determinadas conclusões importantes principalmente no campo das experimentações científicas, a exemplo do que vem ocorrendo com os testes da vacina para a Covid-19.

Tais experimentações científicas devem ser aprovadas por um comitê e devem seguir protocolos internacionais para a proteção da dignidade humana, dos princípios da bioética e dos valores humanos e fundamentais.

 

STF

A ideia de que o ser humano é um fim em si mesmo foi ressaltada da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2008, que discutia a constitucionalidade da Lei de Biossegurança, nº 11.105/2005, que continha um dispositivo permitindo a utilização de células-tronco embrionárias para fins de experimentações científicas.

A ADI 3.510/STF apresentou a discussão a respeito da consideração do ser humano como um fim em si mesmo e da tese utilitarista, que preconiza a maximização da felicidade, com a ideia de que os fins justificam os meios, ou seja, a necessidade de curar doenças graves, doenças degenerativas e doenças hereditárias, em geral, justifica a utilização das células-tronco embrionárias em experimentações científicas, desde que não haja vida viável.

O Supremo Tribunal Federal entendeu, naquele momento, que, se não houver atividade cerebral e vida viável, os embriões excedentários, resultantes das técnicas de reprodução humana assistidas, poderiam ser utilizados para efeito de experimentações científicas, em vez de serem descartados pelos laboratórios.

Se as pesquisas com células-tronco embrionárias avançaram no Brasil a partir de então, é outra discussão, mas pode-se afirmar que foi a primeira vez que a Corte Constitucional brasileira se deparou com a necessidade de legitimar uma decisão sensível aos interesses de diversos setores da sociedade brasileira, o que foi um avanço importante, principalmente pela quantidade de audiências públicas realizadas com a sociedade civil.

 

Retórica

O que foi conquistado pela sociedade brasileira, desde então, como já foi mencionado, é algo que merece maior reflexão, uma vez que, pouco mais de uma década depois, nos deparamos com a pandemia ocasionada pelo coronavírus e todos os posicionamentos filosóficos incidentes sobre o biodireito ficaram apenas no campo do formalismo e da retórica, exceção feita à tese utilitarista, muito utilizada para justificar a falta de políticas públicas implementadas para lidar com a crise.

Na realidade, a falta de adoção de políticas públicas para a implementação de avanços biotecnológicos, no Brasil, nunca foi uma prioridade do setor público, embora tenhamos o Sistema Único de Saúde, um dos melhores do mundo, e que, teoricamente, proporciona o acesso universal à saúde aos cidadãos brasileiros, independentemente de contribuição, conforme dispõe o artigo 196 da Constituição brasileira.

Apesar disso, não estávamos preparados para lidar com a pandemia, e acredito que, com exceção da Nova Zelândia, nenhum outro país estava, pois isso demandaria uma política pública responsável e comprometida que teria de ser desenvolvida e implementada com anterioridade e não durante a crise.

Portanto, prefiro dizer que a crise que o mundo atravessa não é a crise do coronavírus, mas sim uma crise de nossas instituições, da falta de políticas públicas, da falta de gestão e de governança e mais, da falta de ética ambiental intergeracional e institucionalizada pelos estados promovida para proporcionar a consolidação da globalização hegemônica e desigual.

A princípio, a sociedade de risco, decorrente da globalização implantou uma sociedade dicotômica notadamente marcada pela divisão dos países em centrais e periféricos e tudo foi sendo devastado aos poucos, as culturas locais, os países mais pobres, os países pequenos, o multiculturalismo, a interculturalidade e as minorias.

Então, nos deparamos com o coronavírus e percebemos que o mundo não comporta mais a dicotomia globalizada, mas está interconectado de modo que todo mal provocado num determinado canto da Terra, gerará efeitos em âmbito global e ricos e pobres passaram a sofrer do mesmo mal denominado “Covid-19”.

Fato é que populações menos favorecidas economicamente estão sofrendo as consequências gravíssimas da pandemia, mas os países mais ricos e mais poderosos também.

 

Escolha

Aqui, portanto, um outro ponto de conexão entre o biodireito e os direitos humanos: não há vaga para todos nos leitos dos hospitais, então escolhas devem ser feitas e surge a discussão a respeito de quem tem direito a viver e quem não tem direito a viver. Nesse caso, é possível dizer que os fins justificam os meios? É possível vislumbrar uma postura ética na seleção de pessoas passíveis de tratamento?

No Brasil, o sistema único de saúde é universal, como já foi explicado, todos têm direito independentemente de contribuição, mas o acesso deve ser progressivamente proporcionado com a adoção de políticas públicas para fazer frente à demanda. Até aqui, nenhuma novidade.

A pergunta que se faz é por qual motivo referidas políticas públicas não foram adotadas, se já havia a suspeita de uma crise de tamanha magnitude?

Por isso, entendo que, nesse caso, a função do biodireito não se refere apenas à atividade típica exercida pelo Poder Judiciário de julgar os casos que lhe são apresentados, mas sim de formador de políticas públicas. Sendo assim, destaco que deve haver um trabalho intenso para criação de políticas públicas nos âmbitos econômico, financeiro, tributário e outros, como, por exemplo, a criação de uma dotação orçamentária para destinar o dinheiro público, do cidadão que tem direito à saúde, ao enfrentamento de futuras crises.

Logo, a escolha de pessoas passíveis de tratamento não se justifica, uma vez que não se pode considerar a defesa do direito à vida uma norma programática que pode e deve ser cumprida de acordo com as possibilidades da administração pública, que teve décadas para construir o aparato estatal necessário para o enfrentamento da pandemia.

Sempre estivemos em pandemia! Vivemos a pandemia da falta de ética, da falta de respeito à dignidade humana, da falta de respeito aos direitos humanos, dos sistemas de proteção aos direitos humanos e de seus mecanismos de concretização.

Sem o acesso universal e global à saúde, sem ética ambiental intergeracional, sem o conhecimento do sistema jurídico de direito internacional, o biodireito será apenas um capítulo não escrito nos bancos das universidades e das instituições públicas.

Para contribuir com a discussão, resolvi desenvolver uma atividade acadêmica com a comunidade da UFU e com a comunidade externa. Acesse o EDITAL

 

*Cláudia Loureiro é docente de Biodireito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. 

 

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