Publicado em 17/06/2020 às 18:10 - Atualizado em 11/10/2023 às 12:58
Para que o Bolsa Família fosse implementado e legitimado socialmente, ocorreu um movimento de ressignificação das práticas de assistência social (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado/Fotos Públicas)
O Bolsa Família é a maior expressão de programa de assistência social do país. O que podemos aprender com a experiência de formulação deste programa no início dos anos 2000 para avançarmos nas propostas de ampliação de programas deste tipo hoje? Responder a esta questão exige acompanhar o processo de reformas nos programas sociais brasileiros que se inicia na década de 1990.
Foi neste período que experiências sociais de reivindicações por melhores condições materiais de vida foram traduzidas pelo Estado em programas de transferência condicionada de renda, inseridos no rol das políticas sociais brasileiras. O modo como as baixas condições materiais de vida de trabalhadores - decorrentes do desemprego e da concentração de renda– foram traduzidas pelo Estado em programas sociais, informou os valores e as concepções que tornaram aceitáveis para a sociedade brasileira a implementação deste tipo de programa.
O Bolsa Família, criado em 2003, é alvo constante de análises e debates nas cenas públicas e acadêmicas. No entanto, grande parte das publicações acadêmicas, institucionais e de opinião tratam dos impactos e avaliações sobre o programa a partir de seus próprios objetivos. Havia uma lacuna nestas produções que não permitia observar as dimensões do processo histórico que o forjou social, política, cultural e institucionalmente.
Deste modo, na pesquisa de doutorado “Reformas nos Programas Sociais brasileiros: Solidariedade, Pobreza e Controle Social”, investiguei a trajetória política e social que forneceu elementos para o programa, com atenção a basicamente duas questões: Por que escolhemos o formato de programa do Bolsa Família como a melhor opção para lidar com as questões sociais da fome e da pobreza e, principalmente, quais foram as escolhas políticas que levaram a este formato de distribuição condicionada de renda?
A análise das experiências e embates políticos, do clima e das reivindicações sociais que, desde o início dos anos de 1990 - em um processo cumulativo - produziram referenciais a partir dos quais emergiu a proposta e o formato do Bolsa Família no início dos anos 2000, evidenciou não só os motivos pelos quais esse formato de programa foi escolhido frente a outras possibilidades que existiam, mas também como foi socialmente legitimado enquanto a melhor opção possível.
O formato atual do Bolsa Família registra uma longa trajetória política por meio da qual sucessivas adaptações e reformas realizadas em propostas e programas que carregavam a bandeira do “combate à fome e à pobreza” foram disputados, transformados e adaptados. Dentre estes, pode-se destacar o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), a Renda Básica de Cidadania, o Bolsa Escola e o Fome Zero. Diferentes entre si em seus princípios e objetivos, as experiências de formulação desses projetos e programas, progressivamente forneceram elementos que orientaram os interesses e as disputas políticas que informaram as bases para o desenvolvimento do Bolsa Família.
Analisar este processo permitiu evidenciar como foi possível avançarmos socialmente sem necessariamente mudar as nossas concepções estruturantes em torno da fome e da pobreza. A explicação está na forma como diferentes projetos políticos para a implementação dos Direitos Sociais, materializados na Constituição Federal de 1988, foram equilibrados e acordados em uma proposta única que foi capaz de enviar mensagens simbólicas de que o Estado finalmente atenderia demandas dos trabalhadores empobrecidos pelas condições de desemprego e de concentração de renda. Fatores estes que são, basicamente, marcadores históricos de nossa sociedade.
Uma parcela expressiva da população brasileira acessa o Bolsa Família, de modo que as discussões sobre a conduta e os modos de vida destes beneficiários estão constantemente alimentando a esfera pública de debates. Nesse sentido, as condições impostas por este programa cumprem o papel de consolidar um entendimento social em torno do que é, e de quais são os limites da cidadania.
As escolhas políticas que forjaram o Bolsa Família implementaram um modelo focalizado de acesso aos Direitos Sociais. Isto implica o cumprimento das condicionalidades do programa, que envolvem ações na esfera da educação e da saúde. São estas condicionalidades que limitam as formas pelas quais é aceitável que as pessoas tenham acesso a direitos sociais que deveriam, por sua vez, ser universalizados.
As condicionalidades, portanto, atuam para tornar socialmente aceitável a transferência de dinheiro, e ao mesmo tempo, como forma de fiscalização e acompanhamento dos sujeitos atendidos. Das expectativas sobre a universalização dos Direitos Sociais, em meio ao processo de reformas que ocorreram em programas sociais diversos, e de instituição do Bolsa Família, emergiu um tipo de consenso de que deve haver, simbolicamente, acordos e contrapartidas para que a cidadania se amplie para parcela empobrecida da população.
Até pelo menos o ano de 2004, houve uma tensão política e social constante entre caminhos de universalização dos direitos sociais e de mobilização comunitária frente a uma imensa pressão social e institucional pela constituição de um programa social, que deveria aplicar a focalização para o acesso aos Direitos Sociais, com a definição de um público-alvo muito bem definido. A expectativa da focalização é a oferta de resultados de gestão institucional, dentre eles, a promoção de um tipo de desenvolvimento social e econômico atrelado à ideia de responsabilização individual.
O Bolsa Família emergiu dessas tensões como resultado de ajustes e consensos que foram realizados para que se encaminhasse soluções para a dramática condição de empobrecimento das famílias de trabalhadores brasileiros. É importante notar que a ampliação progressiva do Bolsa Família, principalmente até meados de 2014, promoveu importantes alterações nas formas de reivindicação social.
Para que o Bolsa Família fosse implementado e legitimado socialmente, ocorreu um movimento de ressignificação das práticas de assistência social, deslocando-as da esfera de debates públicos para o acompanhamento e gestão individualizado das famílias atendidas. Este processo de ressignificação lidou com dimensões morais que constituem entendimentos em torno da dignidade, da cidadania, do emprego, dos direitos sociais e do consumo, atrelando-os às condições materiais de vida individuais, e não sociais.
O controle social em torno das famílias de trabalhadores uniu a fiscalização institucional e, pode-se, portanto, pontuar, de hábitos, de modo que vimos emergir concepções que estão coladas à imagem do programa que ordenam consensos sociais sobre como devem ser e viver os trabalhadores atendidos. Este é um elemento que se expressa socialmente, muitas vezes, carregado de características que denunciam estereótipos e certa rejeição ao público-alvo do programa identificado como de pessoas pobres.
Nesse sentido, o significado de desenvolvimento social também sofreu transformações desde a implementação do Bolsa Família. Passando a indicar a inclusão social a partir da abrangência e capacidade de atendimento do programa, e não necessariamente pela consolidação de processos de mobilidade social sustentáveis em longo prazo.
Analisar quais foram os processos políticos e sociais dos quais emergiram o formato e o entendimento de que o programa do Bolsa Família seria a melhor opção para lidar com as questões sociais da fome e da pobreza, evidencia como a proposta de um tipo específico de solidariedade social foi um dos elementos centrais para a consolidação política e social deste programa.
Nesse aspecto, foi preciso gerir a solidariedade enquanto sentimento a ser despertado individualmente, e não enquanto um projeto político capaz de encaminhar a construção de uma identidade social que legitimaria a universalização de direitos sociais aos moldes do projeto de sociedade reivindicado e materializado na Constituição Federal de 1988.
Os valores morais associados à implementação e à defesa do Bolsa Família expressaram a síntese social produzida pelo equilíbrio entre práticas de assistência social anteriores, desenvolvidas e ampliadas ao longo dos anos da década de 1990, e aquilo que foi colocado como novidade desde sua implementação quando se anunciou uma “nova cultura institucional” mais eficiente na gestão das políticas sociais brasileiras.
Os debates sobre a ampliação deste tipo de programa, coloca em cena novamente a disputa pelo formato que o Estado assumirá para a distribuição de renda aos trabalhadores empobrecidos. No entanto, a análise das reformas nos programas sociais explicita que a desigualdade social não pode ser lida descontextualizada dos processos que permitem o avanço da concentração de renda e do empobrecimento das famílias de trabalhadores.
Propostas como a Renda Básica de Cidadania, formulada por Eduardo M. Suplicy, originalmente eliminariam as condicionalidades para a transferência de dinheiro ― um pilar importante de sustentação e legitimação social do Bolsa Família. A proposta de Renda Básica difere-se ainda, dos auxílios emergenciais praticados na atual conjuntura de pandemia, ao passo que também questiona os acordos políticos e sociais feitos para que o Bolsa Família pudesse existir. É uma proposta que foi, institucionalmente, vencida pelo programa Bolsa Escola nos anos de 1990, justamente porque não condicionava o acesso ao dinheiro às ações individuais frente às baixas condições materiais experienciadas pela população a ser atendida.
A proposta de Renda Básica, para ser discutida hoje, precisará considerar uma mudança em valores e concepções sobre a pobreza no Brasil. Em outra via, a ampliação do Bolsa Família pode criar um movimento interessante de descaracterização de seu público-alvo inicial. Desde os anos de 1990, foi preciso que o Estado engendrasse um duro processo de convencimento social para que as famílias de trabalhadores se identificassem como “pobres” de modo a aceitar o acesso a auxílios por meio de programas que assim as identificavam.
Como este processo se dará agora, em meio a uma estratificada classe média de trabalhadores autônomos e informais, poderá ser um dos pontos chaves na construção de outros formatos para o acesso aos Direitos Sociais e para a construção coletiva de reivindicações. Em outra dimensão que se mostra como tendência, esse processo pode contribuir para a ampliação da pressão sob os trabalhadores, aprofundando noções que individualizam o acesso às conquistas sociais.
As questões colocadas atualmente diferem daquelas pautadas entre 1990 e 2014. Os desdobramentos políticos pela emergência da pandemia renovam questões e possibilidades para os programas sociais brasileiros, que mediante ao aprofundamento das crises econômica e política, permanecem centrais.
* Denise De Sordi é historiadora, Doutora em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (PPGHI/UFU). Profa. substituta do Instituto de Ciências Humanas do Pontal da UFU.
Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Experiências e Processos Sociais - GPEPS (CNPq/UFU) e associada ao Grupo de Investigação História Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais, do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa (UNL).
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