Publicado em 29/07/2020 às 11:30 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52
Gustavo Antonio Raimondi é médico da família e comunidade e professor da UFU desde 2015. (Foto: arquivo pessoal)
A Revista Brasileira de Educação Médica publicou, em junho, um editorial (leia aqui) sobre o racismo estrutural e a violência contra a população negra. A publicação foi escrita pelo Grupo de Trabalho Populações (In)Visibilizadas e Diversidades, vinculado à Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM). O médico da família e professor Gustavo Antonio Raimondi, do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), foi um dos autores do editorial. Ele concedeu uma entrevista ao portal Comunica UFU sobre racismo na Medicina.
Professor, como o exercício da Medicina pode propagar o racismo estrutural?
Nós observamos na prática e no ensino da Medicina que, quando silenciamos os processos de discussão, nós mantemos muitas ações violentas e acabamos reiterando um discurso hegemônico na instituição. Quando analisamos os livros da saúde, vemos publicações que utilizam somente a cor da pele branca como referencial para que os estudantes aprendam sobre lesões, com predomínio dos corpos masculinos, em detrimento de outras possibilidades.
Ao longo dos anos, temos percebido modificações nos livros da formação médica. Tínhamos, nos livros, o predomínio da pele branca. Hoje, temos livros sobre as lesões dermatológicas na pele negra, por exemplo. Um detalhe que eu falo sobre educação médica é fortalecer a presença do movimento social na formação em saúde, para que, dessa forma, tenhamos um diálogo importante com a comunidade, e isso promova saúde, equidade e os direitos humanos.
E, além disso, quando a Medicina não compreende seu papel social diante de uma comunidade - predominantemente negra no nosso país -, nós acabamos perpetuando o racismo na nossa escola [de Medicina]. É interessante também observar que há vários estudos nacionais e internacionais que comentam que o fato da escola não trabalhar os determinantes sociais em saúde, como a questão de raça e etnicidade, também continua reproduzindo essas desigualdades estruturais do nosso país que impactam a saúde.
De acordo com o Atlas da Violência de 2019, a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, cerca de 75 são negras. Na sua avaliação como médico, que pode entrar em contato com essas vítimas, por que esse número é tão alto para a população negra?
Esse número é alto por causa da nossa história em relação à violência dessa população. Há pouco mais de 100 anos tivemos a “abolição da escravidão”, mas ainda observamos, em nossa sociedade, essa estrutura escravocrata perpetuada em nosso dia a dia. Quando não trabalhamos esse tema nas escolas médicas, fazemos uma manutenção dessa historicidade, que é marcada pela violência, pelas relações de poder e subjugação. Com isso, a população negra acaba ficando na posição violentada, e isso demonstra para a gente a importância de pensar as relações raciais. O dia 22 de Julho de 2020 é marcado como o centenário de nascimento do Florestan Fernandes, um dos grandes sociólogos do Brasil. Para ele, uma sociedade democrática precisa repensar a questão da raça e etnicidade da população negra, que é uma coisa que infelizmente ainda temos poucas ações.
Quando falamos sobre violência, é importante também refletir sobre a branquitude no sistema racista. Porque quando entendemos que a questão de raça é uma questão da sociedade, precisamos repensar essas relações para repercutir na redução de violência e assassinatos. O editorial cita alguns exemplos de violência contra a população negra. Temos a morte do George Floyd nos Estados Unidos, que acende uma série de mobilizações no Brasil e no mundo. Mas se a gente considerar o Brasil, temos uma historicidade de violências graves anteriores. Temos violências contra jovens, contra crianças, fruto dessa historicidade que precisamos rediscutir.
Como é a representatividade de negros e negras na Medicina?
Ela começa a ter um aumento a partir das políticas de cotas étnico-raciais no Brasil. Observamos que elas promoveram uma diversidade no curso de Medicina, assim como nos outros cursos universitários, porque essas políticas ampliaram as questões de reparação histórica e da justiça social. A formação médica tem uma marca histórica: predominantemente masculina e branca, com uma modificação nos últimos anos, com aumento no número de mulheres e com maior diversidade [racial]. Não acho que a representatividade ainda seja expressiva; ela é baixa. Há turmas sem um(a) estudante negro(a). Precisamos pensar a representatividade também no corpo docente, que ainda é predominantemente branco, com poucas pessoas negras. Precisamos de políticas também de ingresso da população negra nos cursos de Pós-graduação. Caso contrário, iremos manter a falácia da meritocracia - que precisa ser combatida - para que possamos diminuir o racismo.
Além disso, é necessário incluir, nos planos de ensino, autores e autoras negros e negras. Por exemplo, nós temos vários pesquisadores no Brasil que muitas vezes não têm espaço nas salas de aula. Aqui em Minas Gerais temos a Conceição Evaristo de Jesus, uma grande poetisa que aborda o racismo da sociedade. É muito importante que ela seja lida em outros cursos, além da Literatura, por exemplo.
O que as faculdades de Medicina devem ensinar para que a formação seja antirracista?
Não basta somente não ser racista, precisamos ter posturas antirracistas. E, nesse sentido, as diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em Medicina, de 2014, amplificam a necessidade do debate das questões étnico-raciais nos cursos, evidenciando, inclusive, a necessidade de que nós possamos inserir as histórias das culturas afro-brasileiras e indígenas na formação profissional. Então, uma ação antirracista seria efetivar esses debates e trabalhar a relação da branquitude com o racismo, para pensar na importância da mudança de atitudes. Se trouxermos isso para a formação [médica], vamos conseguir ampliar a possibilidade de termos posturas antirracistas.
Também destaco que as universidades têm a importância de pensar a responsabilidade social, os direitos humanos e a justiça social. Então, esse editorial que publicamos é fruto de um trabalho entre os(as) educandos(as) e educadores(as) da ABEM que, interessados(as) pelo tema, buscam explicitar esse debate na formação. Entendemos que esse debate é necessário não só para a formação em Medicina, mas também em outros cursos da saúde.
Como você avalia a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra?
Temos que considerar que a construção de uma política pública acontece pelos movimentos sociais atrelados à comunidade acadêmica e outros setores da sociedade civil. Essa política é resultado de uma luta histórica, um marco importante para pensar a saúde no país, para um público específico. As grandes dificuldades dessa política é a efetivação dela e sua avaliação da implementação ao longo dos tempo. Hoje, estamos na terceira versão da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e poucas pessoas sabem a existência dela, e as orientações que ela traz. Por isso, a ampla divulgação, fiscalização e avaliação são os principais pontos para aprimorá-la no dia a dia.
Lista de autores do editorial publicado na Revista Brasileira de Educação Médica.
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Palavras-chave: racismo Medicina educação
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