Publicado em 10/09/2020 às 16:01 - Atualizado em 19/12/2023 às 11:02
Manifestação em Brasilia no Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher, 25/11/2019 (foto: Lula Marques/Fotos Públicas)
Cada dia mais, temos presenciado em nosso cotidiano discussões acerca de um dos maiores problemas de segurança e de saúde públicas brasileiras: a violência sexual contra a mulher. A grande demanda da mídia e das redes sociais tem influenciado também a ciência, que analisa o fenômeno amplamente, buscando compreender as consequências físicas e psicopatológicas que se entrelaça com a temática da violência.
Hoje, de acordo documentos disponibilizados pela Secretaria Municipal de Saúde de Uberlândia, sabemos que no Brasil uma a cada cinco mulheres estão expostas à violência sexual, totalizando em média 40 mil casos de violência sexual notificados ao ano. Estes dados se tornam mais alarmantes quando pensamos nos problemas de saúde que podem surgir imediatamente após o evento traumático ou no decorrer da vida das vítimas.
Ao olharmos o lado emocional, nos deparamos com vários sintomas, como por exemplo, a depressão, a ansiedade e a ideação suicida. Durante nossa pesquisa e com base na literatura da psicanálise hospitalar, presenciamos a importância da autonomia narrativa do paciente sobre seu próprio processo de adoecimento. Assim, o trauma ganha seu próprio colorismo e significância, tendo a característica de ser um potencial transformador. Dizer isso é, também, afirmar que o trauma causado pela violência acarreta a perda de algo, pois ela é resultado da realização do desejo de um mais forte sobre o outro, mais fraco.
As pacientes com as quais tivemos contato no ambulatório de apoio integral a vítimas de violência sexual do Hospital de Clínicas da UFU, através dos relatos de seu sofrimento, nos convocam a pensar sobre como o machismo e a sociedade vêm sendo responsáveis por produzirem um dispositivo que favorece o violentador e contribui com o adoecimento da vítima. Um exemplo disso, é o sentimento de culpa, que se manifestou em todas as mulheres entrevistadas.
Ele se apresenta em duas posições distintas: a partir dos outros, que culpabilizam diretamente a mulher por ter sofrido o estupro, mas, também, vindo da própria vítima, em um movimento de internalização do machismo e de suas leis sociais. A violência é uma ação que desumaniza o sujeito, impedindo ou anulando sua atividade e fala. Nesse sentido, o “ser mulher” tem sido definido pelo machismo, que dita e escreve leis e modos de comportamento e de submissão das mulheres. A emancipação da mulher é sempre acompanhada da submissão, tornando-se natural e comum o ato de questionar se, de fato, suas escolhas estão corretas, localizando neste ponto a culpa.
Nos casos de violência sexual contra a mulher, é possível que se perceba a culpabilização da vítima, o que de certa forma escancara o machismo, uma vez que ocorre a inversão de culpa, com a própria mulher sendo culpabilizada, em detrimento do agressor. É entendendo este dinamismo social que conseguimos identificar em alguns discursos a internalização da culpa nas vítimas de violência, fazendo com que essas questionem se teriam alguma responsabilidade pelo crime que sofreram.
Algo interessante que percebemos durante nossos encontros foi que as pacientes tinham formas distintas de significar o trauma sofrido. Podemos então, nos atentar para o fato de que o trauma pode ou não ganhar um sentido negativo na vida das vítimas, isso dependerá de múltiplos fatores, como, por exemplo, a rede de apoio das mulheres e sua história anterior. Foi assim que entendemos que existiam mulheres que estavam em uma posição mais esperançosa, e outras, em uma posição mais desesperançosa.
A esperança se manifestava, de uma maneira geral, como um desejo de realizar sonhos (alguns deles, ‘novos sonhos’ e outros, sonhos que elas tinham durante sua vida e não conseguiram conquistar). As mulheres esperançosas revelaram o desejo esperançoso de conseguir ser outra. A esperança surgiria como uma luta entre aquilo que já sofreram e aquilo que está por vir, constituindo uma dialética interessante, uma vez que ela indica a capacidade do humano de esperar pelo inesperado, como um caminho persistente pelo escuro. Nesse sentido, podemos entendê-la como a força responsável por sustentar o desejo de caminhar, ainda que tal caminho seja, de certo modo, obscuro.
A desesperança, por sua vez, se apresenta como um avesso, uma vez que no discurso há a impressão de que é impossível encontrar outras vias substitutivas de realização. Não haveria um emprego, uma relação conjugal ou uma nova aquisição, que poderia impulsioná-las a ter força psíquica para dar continuidade àquela vida. Desse modo, entendemos que a desesperança seria também uma espécie de fixação do trauma na vida da pessoa, ou seja, há uma onipresença do trauma na vida da mulher, de modo que ela se encontra em uma posição de imersão no que lhe acometeu, gerando uma paralisação desta com relação a própria vida.
Quando compreendemos a dinâmica e a complexidade envolvida nos casos de violência sexual contra mulher, somos convocados a pensar em meios de acolher e oferecer apoio à vítima. Nos parece que o tripé da política, educação e saúde ainda é a melhor solução para a prevenção e tratamento dessas mulheres. Acreditamos ser necessário o investimento em políticas educacionais que visem à compreensão do corpo e do respeito, junto com políticas de saúde que garantam uma atenção integral à vítima. Porém, o que temos acompanhado é o desamparo por parte do governo, que promove um desmonte constante do direito básico da mulher vítima de violência, favorecendo o discurso do machismo e da dominação do corpo mais forte sobre o mais fraco.
* JULIA ALVES DOS SANTOS é graduanda em psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, estando, atualmente no 7º período do curso. Tem voltado seus interesses para a área de Psicologia Hospitalar, com ênfase nos processos de violência contra criança e mulher. Atualmente, é pesquisadora no Núcleo de Atendimento Integral a Vítimas de Agressão Sexual (NUAVIDAS - HC/UFU).
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