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Leia Cientistas

Mortos que continuam vivos: um mistério na história da medicina

Na seção ‘Leia Cientistas’, confira texto de historiador da UFU que estuda a morte e os usos do corpo post mortem

Publicado em 18/01/2024 às 13:43 - Atualizado em 23/01/2024 às 13:27

 

Em agosto de 2002, a BBC publicou um artigo sobre pessoas que tinham sua morte decretada legalmente, mas que ainda conservavam o coração batendo e outros órgãos do corpo funcionando. Esses casos resultaram em uma série de questionamentos por parte de médicos sobre os métodos da medicina para definir o fim da vida e decretar a morte. Esse fenômeno que chama a atenção de cientistas na atualidade tem uma história que remonta aos séculos XVIII e XIX. Trata-se do fenômeno denominado de “morte aparente”, estágio em que o indivíduo ainda conserva sinais de vida, mas que era considerado morto. 

No passado, há vários registros de casos de pessoas que eram enterradas com vida, o que serviu para alimentar a literatura sobre os mortos-vivos que se levantavam do caixão após serem sepultados. Em vista disso, os médicos no século XIX elaboraram diversas teorias em que procuravam determinar quais seriam os sinais inequívocos da morte, e propor medidas que procuravam afastar o temor de ser enterrado em vida. Neste sentido, foram decretadas leis que procuravam regulamentar o período mínimo para os sepultamentos, bem como em alguns países, como na Alemanha, foram construídas casas mortuárias para conservar e observar os cadáveres, até que não existissem dúvidas sobre o fim da vida. 

Com o desenvolvimento da anatomia patológica, entre fins do século XVIII e início do XIX, a morte passou a ser vista como parte de um processo múltiplo e não como um evento único. A partir do exame post-mortem, os médicos observavam que alguns órgãos ainda podiam continuar com sinais vitais, enquanto outros não. Assim, aspectos que antes eram vistos como definitivos para declarar o óbito, como a putrefação, passaram a ser questionados.  Ainda que, nesse período, a medicina ainda estivesse longe de definir um critério único capaz de determinar o fim da vida, foi a partir de várias experiências que os médicos passaram a desenvolver técnicas que permitiam reanimar os pacientes ou vítimas de acidentes de asfixia, por afogamento ou intoxicação por gases.

Tais aspectos indicam uma preocupação com a preservação da vida humana por parte de médicos. Diversas sociedades filantrópicas, com a participação de leigos, voltadas para salvar vítimas de naufrágios foram criadas em países como Inglaterra e Portugal. No Brasil, Theodoro Langgaard (1813-1883), médico que veio para país em 1842, dedicou um de seus verbetes do Novo formulário médico e farmacêutico à asfixia, divulgando conselhos da Royal humane society  (Real Sociedade Humana) a respeito dos socorros que deviam ser prestados aos afogados, os quais envolviam uma série de procedimentos, alguns que hoje seriam questionados. Além da respiração boca a boca, recorria-se a outras formas de reanimação, como o uso de rapé e aplicação de substâncias irritantes ao nariz, toalhas quentes, fricções com flanela na caixa toráxica, soprar com a boca ar nos pulmões, borrifar água e aguardente ou éter na região precordial.  Além desses métodos que podem ser descritos como “tradicionais”, outros foram sendo incorporados, como as experiências com a eletricidade, para reanimar os corpos de pessoas em risco de morte. 

No decorrer do século XX, o desenvolvimento de técnicas de reanimação e de instrumentos, tais como desfibrilador, ventiladores mecânicos e sondas de alimentação, permitiram que pacientes em determinados estágios mórbidos, embora com a perda de determinadas funções do corpo, continuassem a ser mantidos vivos. Mas a definição da morte ainda é um enigma a ser respondido. Apesar dos avanços da ciência, inúmeros são os casos registrados de pacientes considerados como mortos que voltam à vida, Lázaros do século XXI.

Este texto é resultado do projeto “Os debates sobre a morte e os usos do corpo post mortem no Brasil do século XIX”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), a quem o autor agradece o financiamento.

 

*Jean Luiz N. Abreu é professor associado do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Desenvolve pesquisas na área de história da saúde e das doenças.

 

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Palavras-chave: Leia Cientistas história corpos morte

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