Publicado em 29/07/2025 às 10:50 - Atualizado em 11/08/2025 às 14:20
Após anos de luta — iniciada oficialmente em 2008 — o Congado foi reconhecido, em 2025, como patrimônio cultural imaterial do Brasil. A conquista é mais do que simbólica: marca o reconhecimento oficial de uma das manifestações mais antigas e significativas da cultura afro-brasileira e fortalece juridicamente a continuidade dessa tradição que atravessa gerações.
O processo foi liderado por Uberlândia, município que em 2008 já havia concedido o título de patrimônio imaterial em âmbito local, por meio do Decreto n.º 11.321. Desde então, comunidades congueiras da região — incluindo Uberaba, Campos Altos, Ibiá, Frutal e Monte Alegre — se uniram em torno de um projeto coletivo de memória, fé e resistência.
Em Uberlândia, o Congado não é somente uma festa. É parte da própria formação da cidade. Segundo Denilson Nascimento, atual presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, essa trajetória começou ainda no século XIX. “Meu tataravô, conhecido como Escravo André, foi uma das figuras que estruturou o Congado por aqui. As primeiras festas datam de 1874. Depois dele, meu bisavô foi presidente entre 1916 e 1931, quando fundou a Irmandade. Meu avô ficou à frente até 1974, e meu pai de 1976 até 2021. Hoje, eu continuo esse caminho com muito orgulho”, explica.
Para Denilson, o tombamento nacional é uma forma de proteger juridicamente a manifestação contra o esquecimento ou qualquer tentativa de deslegitimá-la. A ligação entre a festa e a cidade também é histórica. Em 2021, a praça da Igreja do Rosário foi oficialmente reconhecida como o espaço do Congado em Uberlândia, mostrando que a fé católica e o congado andam juntas.
As festividades acontecem em maio, outubro e dezembro, com cortejos, cantos, tambores, cores e promessas. Mas, como diz Denilson, o Congado é vivido diariamente. “A tradição não acontece só nas festas. A gente se reúne o ano todo, ensaia, prepara, reza. E ali a gente transmite conhecimento. É de pai pra filho, de mãe pra filha. É assim que se ensina a história", destaca Denilson.
Essa passagem de saberes também carrega as marcas da sociedade. Segundo ele, mudanças sociais impactaram diretamente como o Congado se organiza: “Antes, as mulheres não participavam diretamente. Ficavam em casa, fazendo comida, hoje temos mulheres nos ternos, nos cargos de organização. Isso mostra como o Congado acompanha a história", ressalta.
A relação de Cairo Mohamad, professor da Faculdade de Educação da UFU e doutor em História Cultural pela UnB, começou ainda na infância. Havia um terno de Congado na rua em que morava e, embora tímido demais para participar, observava tudo com curiosidade. Com o tempo e já na graduação, passou a estudar a manifestação cultural mais a fundo, a partir da resistência congueira em Catalão que era a sua cidade natal.
“O Congado faz parte da história de Uberlândia — uma história de luta das famílias negras, que ainda hoje batalham por visibilidade. É mais que uma festa. É uma atualização da ancestralidade viva", destaca Mohamad.
Cairo explica que a estrutura do Congado é familiar: patriarcal e matriarcal ao mesmo tempo. É nas casas e quintais das comunidades que nascem os ternos, organizados muitas vezes por promessa ou devoção. "Esses grupos surgem dentro das famílias. E se espalham pelos bairros da cidade. A pessoa que entra no Congado geralmente tem uma relação íntima com aquilo: ou foi criada ali, ou está pagando uma promessa, ou foi tocada de alguma forma por essa fé”, explica Cairo.
Para ele, o reconhecimento como patrimônio deve ser acompanhado de políticas públicas, incentivo à preservação e ações educativas. Do contrário, corre-se o risco de congelar o Congado apenas como símbolo, e não como prática viva.
A estudante de Jornalismo Vitória Marcelino se aproximou do Congado em 2022, durante o segundo período da graduação de Jornalismo, enquanto produzia uma reportagem para uma disciplina da faculdade. Na época, não imaginava que a pauta se tornaria um ponto de identificação profunda. “Era só uma matéria. Mas fui acolhida de uma forma que nunca tinha sentido. A mistura do catolicismo com raízes africanas mexeu comigo. Era como encontrar um lugar que sempre me pertenceu, mesmo sem saber,” explica Marcelino.
Desde então, Vitória passou a acompanhar as festividades como observadora e apoiadora. Embora não faça parte ativa dos ternos, atua nos bastidores e já ajudou, informalmente, o grupo Moçambique Estrela Guia com funções de assessoria. “Ali, você pode ser quem é. O Congado mostra exatamente o que é o Brasil: uma mistura, uma diversidade bonita. Católico e africano. Simples e profundo. Tradição e liberdade”, analisa.
Para ela, o reconhecimento nacional é uma forma de proteger essa diversidade mas também de reafirmar que a identidade brasileira é forjada na pluralidade e na ancestralidade negra.
O reconhecimento como patrimônio cultural imaterial do Brasil não transforma o Congado. Ele apenas confirma o que seus praticantes sempre souberam: que essa manifestação é feita de fé, de luta, de comunidade — e que carrega, a cada passo, a história do povo negro.
Mais do que nunca, o desafio agora é garantir que o Congado continue vivo não só nos calendários festivos, mas nas escolas, nas políticas públicas, nas memórias e nos corpos que seguem marchando, rezando e celebrando com orgulho.
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Palavras-chave: Congado Patrimônio Imaterial
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