Publicado em 02/08/2024 às 09:27 - Atualizado em 06/08/2024 às 10:54
O congado, uma das mais significativas expressões culturais de Minas Gerais, está prestes a ser oficialmente reconhecido como Patrimônio Imaterial do Estado. Segundo o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), a expectativa é que esse reconhecimento seja formalizado até o dia 10 de agosto, em uma celebração especial prevista para marcar essa conquista.
Mas afinal, que festa é essa?
Aqui em Uberlândia, o Congado, uma expressão cultural afro-religiosa advinda dos escravizados da região do Congo, na África, é considerado um patrimônio cultural imaterial desde o ano de 2008, com o decreto municipal nº 11.321 de 29/08/2008. Essa expressão da religiosidade católica negra, está presente na cidade de Uberlândia desde, aproximadamente 1881, ou seja, há 143, sendo, portanto, anterior à própria fundação da cidade, que data de 1888. Para que possamos entendê-lo melhor, precisamos definir, primeiramente, os significados de Congo, Congado e Congadas, termos que são semelhantes, mas não são exatamente iguais. O termo “Congo” pode ser definido como aquilo que é capaz de suscitar e redimensionar no presente, uma memória de antepassados, sendo essa uma memória cultural oriunda dos povos Bantos de algumas regiões do antigo Reino do Congo, incluindo os povos presentes na região de Angola e outros reinos.
A respeito do termo “Congadas”, convém destacar que, pode ser definido como um conceito utilizado pelos congadeiros e congadeiras, que se remetem às rememorações dos reinados africanos, através de festas, festejos e festividades, incluindo procissões, coroações, desfiles com apresentações de grupos, guardas, bandas, novenas, missas campais, almoços coletivos e outras ações relacionadas ao contexto da festa. Quanto à expressão “Congado”, é possível defini-la como uma prática de organização sociocultural diária dos grupos, uma expressão social que percorre o calendário de todo o ano, independentemente da data em que aconteçam as festas. Sendo assim, é possível observar os termos supracitados como objetos de mesma natureza com terminologias diferentes e formas distintas de representações.
O Congado é comemorado no segundo domingo de outubro de todos os anos, porém, sua organização se inicia em julho. Neste mesmo mês, os ternos de Congado da cidade recebem uma carta de autorização da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, para iniciarem os leilões. Os leilões ocorrem quando os grupos de Congado vão às casas dos devotos, rezam o terço e, em seguida, solicitam prendas aos vizinhos para que os leilões aconteçam. Na semana anterior à comemoração, realiza-se a novena. Durante a novena, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário recebe dois ou três ternos de Congado por dia. Além dos leilões também ocorrem contatos e reuniões com a Secretaria de Cultura de Uberlândia, por exemplo, na busca por parcerias para a realização da festa.
Após todas essas tratativas, no segundo domingo de outubro, às sete horas da manhã, a celebração se inicia. Primeiramente, todos os ternos de Congado de Uberlândia vão à casa do presidente dos ternos de Congado da cidade. Em seguida vão à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, seguem para os seus quartéis, onde almoçam e recolhem os reinados, retornam para a igreja, na Praça do Largo do Rosário e a procissão pelo centro da cidade começa, onde são coroados os devotos que rogaram à Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito.
Um aspecto importante, para a compreensão da dimensão dessa celebração para os congadeiros e congadeiras é o do tempo simbólico da festa. Ao observar o longo cronograma de atividades e ações, é possível notar que o envolvimento com a organização não se restringe aos dias do festejo em si, porque a vivência festiva não é experimentada somente nos dias da festa devocional. Pelo contrário, a vivência de componentes do sagrado compreende o cotidiano desses sujeitos sociais, demonstrando assim como a festa representa um outro mundo, e o mundo não é apenas aquele que se presencia na festa. Sendo assim, a festa do Congado é uma prática afro-brasileira, com presença majoritariamente negra, e também é alvo frequente do racismo, oriundo, principalmente, das elites da cidade, que demonstram como as práticas racistas, repletas de preconceitos, historicamente atualizados de acordo com as temporalidades, ainda não desapareceram.
Por conta das condutas racistas, num passado recente e por muito tempo, em Uberlândia, o Congado foi visto como uma celebração de baderneiros e de pessoas mais velhas, reproduzindo assim uma imagem negativa para os jovens, que evitavam ao máximo dele fazerem parte logo que atingiam os quinze anos de idade. Felizmente, nos últimos anos a situação tem se tornado bem diferente. É possível notar-se crianças e jovens participando da festa, pois com o fortalecimento das ações antirracistas, as festividades afro-brasileiras vêm sendo revalorizadas como representações positivas das identidades, das vivências e das culturas pretas. “Torna-se pertinente nos dias de hoje falar que o Congado, mais que festa, mais que tradição, é manifestação de pertencimento negro, é de origem africana, mas envolve uma diversidade de perspectivas em que afrodescendência não se traduz numa determinação específica de cor”, destaca o historiador Jeremias Brasileiro.
O Congado também representa um meio e um motivo de ascensão tanto social quanto intelectual. É possível constatar que, nesse sentido, muitas pessoas pretas que não tinham acesso à escola, à saúde, por meio do Congado encontraram algo além da devoção e até mesmo da diversão, o congado torna-se uma referência positiva para os devotos que, ao adentrarem espaços onde são aceitos, tornam mais fortes para reagirem e superarem as situações de exclusão que ainda persistem em nossa sociedade. Nesse sentido, não há por que admitir o antigo discurso racista de que o congado seria território de uma cultura associada a bêbados, ou como se dizia nos meios de elites preconceituosas “congadeiros só batem tambor e não gostam de trabalhar na segunda-feira”. Essas falas precisam ser totalmente superadas para que possamos enxergar o Congado pelo que ele é de fato: um patrimônio cultural imaterial da cidade.
Ao olharmos para essa história, vemos que o Congado, além de tudo o que foi dito, é também um símbolo de resistência contra o racismo religioso presente em Uberlândia. Os congadeiros sofrem constantemente com agressões verbais e físicas durante a celebração, como arremesso de ovos, água e urina durante a procissão; a festa não ser considerada católica, pois advém de um catolicismo negro e, também a falta de apoio, incentivo e divulgação do Congado pelas mídias, Internet e pelas instituições de ensino. E isso ocorre devido ao racismo religioso presente na cidade, que invisibiliza e desvaloriza o seu próprio patrimônio cultural imaterial, que faz parte de sua identidade.
Mesmo com tantos problemas e violências, motivadas pelo preconceito e pela intolerância, acreditamos que seja possível superarmos tais ações e representações que insistiam em invisibilizar e desvalorizar esse patrimônio cultural tão importante para a cidade. O Congado, além de gerar um retorno cultural e financeiro para o município de Uberlândia, faz parte de sua identidade. No ano passado, foi apresentada o PL 2.379/2023, que visa instituir o Dia Nacional dos Congados e Reinados. Longe de ser apenas mais uma data comemorativa no calendário, essa data materializa uma reivindicação de reconhecimento e visibilidade dessas que são manifestações vivas da cultura e da religiosidade popular brasileira do povo preto.
Além disso, o estudo das culturas africanas e afro-brasileira está garantido pela Lei 10.639/03, por isso, educar para as relações étnico-raciais é fundamental, e a inclusão de estudos e pesquisas sobre o Congado na educação básica e no ensino superior se faz necessário, pois compreender a cultura afro-brasileira é um dever de todos os profissionais. Além disso, o Congado de Uberlândia atua nos âmbitos cultural, social e educacional e seus agentes – os congadeiros e congadeiras – atuam como guardiões da memória no município. Por isso, a comunidade congadeira deve ter seus direitos garantidos para festejar livremente, assim como celebrações que não são afro-brasileiras possuem, sem se preocupar constantemente com os ataques, opressões e violências que são resistidos por mais de um século pelos congadeiros e congadeiras de Uberlândia.
*Ana Marília Alves Simões é pesquisadora Fapemig, estagiária no Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché, membro do Grupo de Pesquisa Estudos Negros e graduanda do 7º período do curso de História da UFU.
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Palavras-chave: Congado patrimônio cultura Minas Gerais Leia Cientistas
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