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Leia Cientistas

Ataque à literatura afro-brasileira infantil

O caso Amoras e os discursos que buscam silenciá-la

Publicado em 19/11/2025 às 16:43 - Atualizado em 25/11/2025 às 07:36

O livro se inspira em uma canção dedicada à filha do autor (ilustração: Aldo Fabrini/Amoras)

Você sabia que há pessoas que vandalizam livros ou contestam a presença da literatura africana e afro-brasileira nas escolas? Desde 2003, a Lei 10.639 tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira em todas as instituições de ensino, públicas e privadas, do Ensino Fundamental ao Ensino Médio. Além disso, essa legislação incluiu o Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, no calendário escolar, reforçando a importância de reconhecer e valorizar as contribuições da população negra para a formação do país.

Amparadas por essa lei, muitas instituições de ensino têm buscado incluir em seus projetos pedagógicos obras de autoria africana e afro-brasileira. No entanto, mesmo com respaldo legal, ainda enfrentam forte resistência quando o tema envolve ancestralidade, representatividade e combate ao racismo.

No meu trabalho como bibliotecária e também como pesquisadora do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (Ileel/UFU), tenho observado um crescimento significativo de episódios de censura relacionados a livros com enfoque antirracista. Movida por essa inquietação, desenvolvi um estudo analítico sobre os discursos de censura voltados à literatura infantil afro-brasileira, com foco na obra Amoras, do autor Emicida.

O livro ganhou destaque em março de 2023, após ser vandalizado por uma mãe em uma escola de Salvador. O caso teve repercussão nacional, noticiado por portais de notícias como o G1 e amplamente comentado nas redes sociais.

A partir desse episódio, surgiram questionamentos em outras escolas do país. No primeiro semestre de 2025, em uma instituição educacional do interior de Minas Gerais, Amoras foi contestada após ser escolhida para o projeto literário, destinado à Educação Infantil e focado em representatividade étnico-racial. Alguns familiares exigiram a retirada da obra, alegando que ela promoveria idolatria a orixás e fora escrita por um autor supostamente associado ao crime, devido ao nome artístico “Emicida”.

Repercussão do vandalismo e censura praticados à obra Amoras (imagem: reprodução da portal G1)
Repercussão do vandalismo e censura praticados à obra Amoras (imagem: reprodução da portal G1)

Esse equívoco, porém, revela desconhecimento. Emicida é Leandro Roque de Oliveira, rapper, compositor e referência da música brasileira contemporânea. Seu nome combina “MC” com “homicida”, não em sentido literal, mas como metáfora para sua habilidade em “derrubar” adversários com palavras nas batalhas de improviso.

Escrito por Emicida e ilustrado por Aldo Fabrini, Amoras se inspira em uma canção dedicada à filha do autor. A obra valoriza a identidade negra, compara meninas pretas às amoras e apresenta um glossário com definições de termos relacionados à cultura africana, como Obatalá e Orixás, além de fazer referências a figuras históricas relevantes na luta contra o racismo, como Martin Luther King e Zumbi dos Palmares. É, portanto, um material que dialoga diretamente com os princípios da Lei 10.639/2003.

Ainda assim, expressões ligadas à ancestralidade africana seguem sendo alvo de resistência. Como destacam Andréa Machado de Almeida Mattos, Leina Cláudia Viana Jucá e Míriam Lúcia dos Santos Jorge, o legado diaspórico africano, presente em práticas culturais, religiosas e linguísticas, continua invisibilizado em muitos contextos educativos, onde impera uma visão eurocêntrica que toma a cultura europeia como referência universal.

A partir da Análise de Discurso proposta pelo autor francês Michel Pêcheux, investiguei os sentidos produzidos pelos discursos de censura: o que revelam, o que tentam silenciar e quais interesses sustentam. Analisei reportagens, documentos públicos e o texto da obra censurada, sustentada por referenciais da Análise do Discurso, do letramento racial e crítico, da decolonialidade e da mediação de leitura.

Os resultados mostram que a censura a Amoras não é um fato isolado, mas parte de um movimento conservador mais amplo, que busca bloquear debates sobre racismo, identidade negra e pluralidade cultural na escola. Assim, a censura funciona como estratégia política de apagamento simbólico da cultura afro-brasileira.

Em minhas considerações finais, reflito sobre as tensões entre liberdade de expressão, educação antirracista e políticas de silenciamento. Proibir livros como Amoras não significa apenas negar o acesso à literatura: significa impedir que crianças conheçam outras narrativas, significa empobrecer o repertório cultural escolar e significa dificultar a formação de leitores críticos capazes de reconhecer a diversidade que constitui o Brasil.

 

Marissol Ferreira Batista Cavalcanti é pesquisadora do Laboratório de Estudos Polifônicos e do Laboratório de Estudos em Linguagem, Ensino e seus Materiais (LEP/LabLem/UFU), bibliotecária, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e bolsista Capes.

 

A seção "Leia Cientistas" reúne textos de divulgação científica escritos por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São produzidos por professores, técnicos e/ou estudantes de diferentes áreas do conhecimento. A publicação é feita pela Divisão de Divulgação Científica da Diretoria de Comunicação Social (Dirco/UFU), mas os textos são de responsabilidade do(s) autor(es) e não representam, necessariamente, a opinião da UFU e/ou da Dirco. Quer enviar seu texto? Acesse: www.comunica.ufu.br/divulgacao. Se você já enviou o seu texto, aguarde que ele deve ser publicado nos próximos dias.

 

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Palavras-chave: Amoras livro literatura infantil consciência negra literatura afro-brasileira discurso

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