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Brasil

O mito do Brasil receptivo

Pesquisadores da UFU falam sobre os motivos que levam o país a ser visto como acolhedor aos migrantes, mesmo com os casos de racismo que acontecem ao longo dos anos

Publicado em 07/03/2022 às 08:15 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:39

Painel Etnias, no Boulevard Olímpico, na Zona Portuária do Rio de Janeiro. A pintura de Eduardo Kobra representa a união entre os povos, em referência aos anéis olímpicos. (Fonte: Unsplash)

 

A música, as conversas que se misturavam em um entrelaçar de histórias e os sonhos de uma jovem foram silenciados quando o som do tiro vindo do Golf prata cortou o vento e atingiu a testa de Zuzi. Naquela noite de 2012, a jovem de 27 anos, que estava prestes a concluir seu mestrado em engenharia e pretendia retornar a Luanda no ano seguinte, viu sua vida se esvair após um grupo de brasileiros insultar e ameaçar os angolanos que frequentavam o bar no bairro do Brás, em São Paulo.

Zulmira de Sousa Borges Cardoso não retornou a Luanda em 2013 e tudo o que restou na casa nº 28 da Rua do Ambrizete foram a tristeza e a memória da jovem.

Dois anos após a morte de Cardoso, em 2014, chegava ao Brasil um refugiado político congolês que jamais teria a vida intercruzada com a de Zuzi. Moïse Kabagambe, juntamente de sua mãe e irmãos, fugia da guerra e da fome na República Democrática do Congo (RDC), forçando inúmeras famílias a se arriscarem em travessias para outros países.

Com mais de 5 milhões de deslocados entre os períodos de 2017 e 2019, a RDC encontra-se no nível mais alto de emergência em termos de urgência da ajuda da ONU.

Acreditando que, no Brasil, encontraria um destino mais tranquilo para viver junto de sua família, Kabagambe, assim como Cardoso e milhares de outros migrantes no país, não voltou para casa no dia 24 de janeiro de 2022. O jovem de 24 anos foi morto a pancadas após ir cobrar o salário referente a duas diárias no quiosque que trabalhava na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

 

Pela lente da psicologia

Quando se trata dos mitos, Freud afirmava que eles agem como sonhos,  expressando fantasias em forma de disfarce, e satisfazem desejos inconscientes. Para o psicólogo José Lucas Nunes, graduado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), o mito do Brasil receptivo é uma fantasia coletiva entre os brasileiros que tem a aparente função de impedir que entremos em contato com as dores e a realidade histórica e atual do país.

Fundado na exploração e no massacre dos povos originários, além dos sujeitos - principalmente negros - escravizados que vieram para cá, o Brasil mostra-se receptivo apenas para uma parcela de pessoas: brancos estrangeiros. De acordo com Nunes, isso diz respeito ao mito racial, segundo o qual pessoas pretas são tidas como "inferiores, violentas, sujas e ladras". E a pessoa branca é considerada como "superior, pacífica, pura, honesta e trabalhadora".

Historicamente, o sujeito branco tem a ideia enraizada de que é dominante, poderoso, dono das terras e das pessoas. Uma fantasia colonial. Ao pensar sobre a morte de Moïse, o psicólogo afirma que ele foi assassinado por questionar e exigir o seu direito em ser reconhecido e respeitado como sujeito, assim como os negros escravizados que eram vistos como um corpo sem direito à humanidade. 

“No Brasil, o sujeito preto não é lido como digno, com direito a humanidade e direitos iguais ao branco. E quando é lido como sujeito, é um sujeito inferior, assim como vem sendo desde o início da escravidão. Essa fantasia perversa se repete, as pessoas brancas massacram os negros que questionam tais fantasias, pois não querem abandonar o lugar de superior”, explica Nunes. 

 

Através da história

Fundado em meio a preconceitos e desigualdades, o Brasil carrega consigo uma bagagem racista que permanece até hoje. Para Ivete Almeida, docente do curso de História e coordenadora da Divisão de Promoção de Igualdades e Apoio Educacional (Dipae) da UFU, o racismo brasileiro é uma prática renovada diariamente e, embora muitos costumes tenham sido deixados de lado ao longo das décadas, esse não foi um deles.

Mesmo tratando da história, o tempo não deve ser usado como justificativa para a manutenção de ideais preconceituosos.

“Há quanto tempo temos código penal? Há quanto tempo temos Fundo de Garantia? Há quanto tempo os pais não têm o direito legal de escolher o casamento de seus filhos? Não se trata de tempo, porque se fosse assim, essas outras mudanças também deveriam ser tão fragilmente aceitas quanto a questão da igualdade racial”, explica Almeida.

Assim como o marketing é usado na atualidade para convencer as pessoas de inúmeros ideais e estilos de vida, o mito do Brasil receptivo nada mais é que uma intensa propaganda que se mantém na mente dos brasileiros, sendo utilizada quando convém.

Propaganda para que os italianos viessem ao Brasil (Fonte: Agência Fattobene / Arquivo enviado pelo pesquisador))

 

Zulmira e Moise são marcas que evidenciam que a receptividade brasileira pode ser apenas um sonho que se mantém até que a realidade force abrir os olhos. Sendo migrantes ou não, os negros que vivem no Brasil encontram dificuldades diárias para ocupar espaços em sociedade e convivem com uma constante insegurança de não chegarem em casa ao final do dia.

“Existem pessoas que realmente acreditam que os negros são inferiores. Elas não querem aceitar que as pessoas negras sofrem exclusão e, por isso, acham que política de equidade são ações protecionistas de pessoas que se vitimizam. Esse comportamento racista é o que impede que muitos em nosso país vejam os refugiados como alguém que tem direito ao socorro e ao auxílio”, finaliza a historiadora.

 

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Palavras-chave: Brasil história migrantes moise zulmira receptividade raça

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