Publicado em 17/11/2025 às 12:27 - Atualizado em 18/11/2025 às 09:39
Meu nome é Raquel Virginia Lopes, nasci em janeiro de 1990. Na área rural do município de Varjão de Minas/MG, atualmente a grande região é reconhecida pela Fundação Palmares, como uma Comunidade Remanescente Quilombola.
Quilombo da Corte, situado no Noroeste do estado de Minas Gerais. Eu fui uma daquelas crianças que ninguém visitou até completar os primeiros sete dias de vida. Minha mãe aprendeu com suas tias que as crianças devem ser muito bem guardadas nesses sete dias iniciais. Esses saberes são muito comuns, por aqui passados de geração em geração.
Minha mãe me contou que eu fui crescendo, uma criança muito esperta, falante e observadora. Essa é uma longa história que merece ser contada em detalhes. Escolhi começar assim para que logo que iniciem a leitura, possam identificar de onde eu venho, e buscar em suas memórias quais são as suas origens. Considero que nunca devemos esquecer esse lugar. Ele não existe sem nós, tampouco nós sem ele.
Quando criança não me lembro muito de livros, histórias, personagens, princesas e brinquedos parecidos comigo. Parece ser tão banal, mas o racismo não começa nos atingir na vida adulta, mas na primeira infância.
A vida segue, na adolescência não me foi apresentado a história do Quilombo de Palmares na Serra da Barriga em Alagoas, e sua grande resistência. Onde estavam Dandara, Luísa Mahin, Tereza de Benguela e tantas outras e outros. Eu nunca tinha ouvido falar sobre. Histórias que por muito tempo foram mantidas em segredo, até para uma jovem que nasceu no Quilombo. A certificação da comunidade se deu no ano de 2017, desde então todos nós temos passado por um processo de reconhecimento da nossa própria cultura e história.
Nesse momento, imagino que você deve estar se perguntando, onde pretendo chegar com o texto. Tenho uma pergunta, o que é ser uma mulher negra brasileira? Mesmo depois de anos do fim da escravização em nosso país, pessoas negras ainda vivem a memória do colonialismo em forma de racismo das mais variadas formas.
Desde criança vamos aprendendo que tudo relacionado com nossa negritude não é algo bom, vamos nos afastando o máximo de quem realmente somos, para nos sentirmos pertencentes. Lembrando que nossa infância está intimamente ligada com nossa vida adulta.
Assim desde muito cedo, o fortalecimento da autoestima da criança negra, sentimento de pertencimento, autoconfiança, valorização de suas experiências culturais, sobretudo a garantia de seu direito de existência, são fundamentais. Muda trajetórias e garante a oportunidade de sonhar e realizar sonhos.
São muitas coisas que permeiam a vida de uma mulher negra. Vamos falar sobre cabelos? Sei que ao compartilhar minha história com meu cabelo, ela não será mais um segredo. Porém quando o assunto é algo que envolve o corpo da mulher, as histórias nunca foram isoladas e individuais.
A nossa relação de mulheres negras com nossos cabelos é sensível, complexa e por vezes muito dolorosa. A anulação desse traço marcante da nossa identidade, o cabelo, pode ser um processo longo e silencioso, que acontece dentro de nós.
Com quinze anos de idade após essa construção de não aceitação alisei meus cabelos pela primeira vez, com produtos químicos, daqueles que pela grande quantidade de cabelos se usa mais de um pote, e que a gente não esquece mais o cheiro.
Os cabelos alisados caídos nas costas naquele momento eram sinônimo de liberdade e beleza. Aprendi a usar também outras formas de alisamento, como o secador e chapinha quente. Alisava meu próprio cabelo, o da minha mãe, irmã, primas e amigas. Todo sábado fazíamos isso. Era também um momento de boas risadas e fortalecimento dos nossos laços.
Minha mãe sempre dizia que não concordava com essa história de alisar os cabelos, bonito mesmo é ser natural. Mas nós acabávamos convencendo ela, que alisava também. Quando o secador e a chapinha estragavam, era só usar o ferro de passar roupas bem quente, esse a minha mãe não sabia, e sempre nos questionava o que eram aquelas orelhas queimadas. Memórias da adolescência, muitas boas outras nem tanto. Dificilmente alguém vai conseguir esquecer.
Entre alisamentos, e muitas outras formas de modificar os cabelos naturais, foram exatos quinze anos. Até por volta dos trinta anos, um dia me olhar no espelho, muito lentamente e sentir muita saudade de mim. Retomada do meu corpo e identidade. Algo de dentro para fora em constante construção e reconstrução, que muda entre outras coisas o conceito de beleza.
Durante a transição capilar conheci pessoas que me inspiraram, artistas e outras formas de se sentir representada também são muito importantes. Aceitar os cabelos naturais é libertador, depende da representatividade e do apoio de outras mulheres negras.
Escolher por assumir os cabelos naturais não deve ser uma regra imposta, deve-se considerar as diferentes experiências, histórias e trajetórias que nos constituem enquanto mulheres negras. Não vamos nos aprisionar novamente. O racismo tem ganhado novas formas e vocabulários, sempre atento às nossas fragilidades. Desejar que nossa beleza seja cada vez mais resistente aos padrões não pode impossibilitar outras formas de ser e estar no mundo.
Quando o racismo se reconstrói, nós mulheres negras historicamente também nos reconstruímos. Nossos cabelos são resistência e contam histórias. Isso significa que ser uma mulher negra é um processo de se reconhecer e retomar a autonomia de sua própria história. Considerando os cabelos como parte do corpo negro, sujeitos a opressões por racismo, essas memórias e histórias sempre precisarão de mais aprofundamento e reflexão.
Faço parte do grupo de mulheres negras que estão assumindo suas melhores e variadas versões. O cabelo que minha mãe sempre me ensinou como natural é também minha coroa ancestral, vinda de um continente onde nossos corpos eram livres. África criadora de tecnologias, saberes e muita beleza. Assim devendo permanecer nosso corpo negro e tudo ligado a ele, livre em todo e qualquer território.
Sobre ser mulher negra, o grande poder de ser o que sonharmos, sem padrões e estereótipos. Faça suas escolhas por você, seja feliz e mostre nossa capacidade de ser diversa, isso não será mais sobre esconder.
Estamos juntas, o processo é longo! Descobertas. Histórias reais contadas. Parece muito utópico, mas o que seria dos nossos sonhos e da sociedade que almejamos ajudar a construir se não nos permitimos. Na escrita dessas breves palavras me inspirei em muitas autoras negras que cito com orgulho e gratidão: Lélia Gonzalez, Neusa Santos Sousa, Djamila Ribeiro, Grada Kilomba, Nilma Lino Gomes, Carla Akotirene, Beatriz Nascimento, e tantas outras e outros.
Raquel Virginia Lopes é doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED/UFU) e faz parte do Grupo Estudos Negros. E-mail: rqlcorte@gmail.com
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