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CIÊNCIA

Bioética e o dilema entre ciência e religião

Pesquisa da UFU discute a conduta médica na transfusão de sangue em pacientes testemunhas de Jeová

Publicado em 02/04/2020 às 11:48 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52

Pesquisadora Vania Santos diz que escolheu a abordagem da bioética porque é a ética que delimita todas as profissões. (Foto: Marco Cavalcanti)

 

A transfusão de sangue, entre pessoas com tipos sanguíneos compatíveis, pode ser necessária em casos de anemia profunda, hemorragia grave, queimaduras graves, hemofilia e também após grandes cirurgias. Nesses casos, mesmo com risco de morte, as pessoas que fazem parte da religião cristã testemunhas de Jeová recusam, total ou parcialmente, tratamentos que envolvam transfusão de sangue, dependendo de sua convicção individual e do fracionamento do sangue a ser recebido. Nesse momento, surge um dilema que a bioética pretende resolver.

A pesquisadora Vania Soares dos Santos, graduanda da Faculdade de Direito da UFU, elaborou, no semestre passado, um projeto de pesquisa denominado “Análise bioética-legal do conhecimento e conduta de médicos: hemotransfusão em pacientes testemunhas de Jeová”, que será desenvolvido na iniciação científica, que ela começará ainda no primeiro semestre deste ano.

O trabalho de campo já vem sendo realizado há dois anos. A estudante notou a existência de “muitas inverdades” circulando sobre o assunto. “Há autores que falam que as testemunhas de Jeová não aceitam as transfusões de órgãos e que preferem morrer do que aceitar o sangue. É um estigma. Você acha que uma pessoa que aceita morrer vai para o hospital? Ela não vai!”, afirma.

A motivação para o estudo surgiu no Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (Cedire), grupo de pesquisa sobre direito e religião, referência no Brasil e sediado na UFU, do qual Santos faz parte. A orientação é feita por Rodrigo Vitorino, professor líder de pesquisa no Cedire. Segundo ele, é frequente o contato do centro com pessoas de outras áreas e o Direito tem muito a dizer sobre as questões da bioética. “O Direito é responsável pelas regulamentações da vida em sociedade, e o elemento central dessa regulamentação do direito brasileiro pode ser visto como a proteção da dignidade humana”, explica o orientador da pesquisa.

As restrições determinadas a partir de princípios religiosos, éticos ou morais, denominadas como objeção de consciência, chamou atenção de Santos no grupo de pesquisa. Então, ela trouxe essa abordagem para o contexto do médico que não reconhece a recusa da transfusão de sangue, resultando em uma situação de vulnerabilidade do paciente.

Na UFU já foram defendidos dois Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) sobre a temática, ambos no curso de Direito: “Bioética e direitos fundamentais: a recusa às transfusões de sangue pelas Testemunhas de Jeová”, de 2018, com autoria de Larissa Carvalho, e “As Testemunhas de Jeová e a Transfusão de Sangue”, de 2019, com autoria de Igor Morelle. Segundo Santos, os dois trabalhos tratam somente a temática da dignidade da pessoa humana. “Tem pesquisa que tem a opinião das testemunhas de Jeová, porque elas não aceitam sangue. E dos médicos? Eu não encontrei”, conta.

 

Religião

Com mais de 8,5 milhões de praticantes no mundo, segundo seu site oficial, e aproximadamente 900 mil no Brasil, a religião denomina Deus pelo nome Jeová e faz suas reuniões nos chamados Salões do Reino. Uma particularidade é a forma como interpretam algumas passagens da Bíblia (Gênesis 9:4; Levítico 17:14; Atos 15:20). Para as testemunhas de Jeová, qualquer um que viesse a receber o sangue de outra pessoa seria considerado como impuro ou desobediente a Deus.

 

Testemunhas de Jeová não usam apenas uma versão específica da Bíblia, mas a interpretação do versículo 20, do capítulo 15, do livro de Atos é feita de maneira diferente das demais religiões cristãs. (Foto: Matheus Minuncio)

 

Alcino Bonella é professor na UFU, atua em pesquisa e ensino de ética e bioética e também é membro da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). O docente acredita que sempre houve um conflito cultural desnecessário entre as pessoas com maior inclinação religiosa com as de maior inclinação científica, e que a suposta condição de igualdade entre as pessoas coloca a ética pública acima da religião. “Um grupo religioso, numa sociedade democrática, tem liberdade para fazer e acreditar no que ele quer, desde que não elimine a liberdade de outros“, analisa.

Santos, que é adepta da religião a qual está pesquisando, afirma que as testemunhas de Jeová somente querem receber o tratamento de forma humanizada. “O tratamento humanizado é o médico amigo, não encarando a pessoa como um produto, mas como um ser humano que está no seu grau mais alto de vulnerabilidade”, esclarece.

Uma alternativa para esta realidade é o auxílio prestado pela Comissão de Ligação com Hospitais (Colih), ligada à própria religião das testemunhas de Jeová. São mais de 1700 pessoas, que fazem parte da comissão, ao redor do mundo. No Triângulo Mineiro, são aproximadamente 30 membros intermediando o contato dos pacientes que passam pela situação da recusa médica com assistentes sociais, membros do judiciário ou médicos com experiência nesse atendimento.

O conhecimento dos médicos sobre a existência e a atividade dessa comissão será, inclusive, um dos questionamentos de Santos aos profissionais da medicina. Os membros da Colih visitam hospitais para prestar assistência pastoral e também verificam se existem pacientes necessitando de seus serviços e que desejam ter um atendimento intermediado pela comissão.

Segundo Bonella, cada indivíduo deve seguir o que pensa que é melhor para a própria vida; isso é a liberdade constitucional. “Só poderiam intervir na liberdade de uma pessoa para proteger outra pessoa e não a própria pessoa. Isso seria um paternalismo um tanto quanto intrometido ou indevido, que médicos, legisladores ou religiosos acham que sabem acima do próprio paciente”, comenta o professor.

Ademais, Santos afirma que as leis de direitos à vida e à religião têm divergências e concorrência entre si. Com isso, o intuito de sua pesquisa é beneficiar a comunidade médica e a religiosa. “A pessoa religiosa vai entender e saber porque o médico não a trata. Porque elas entendem que o médico não aceita objeção de consciência delas por simples preconceito. No caso do médico, ele vai ter a chance de explicar porque ele não trata”, explica.

 

Pesquisa

Foi constatado, pela pesquisadora, que antigamente qualquer paciente deveria aceitar todas as decisões médicas. Durante o Julgamento de Nuremberg (Alemanha), na Segunda Guerra Mundial, época em que os experimentos nazistas aconteciam, a autonomia dos pacientes diminuiu ainda mais. Com o passar dos anos, novas normas éticas surgiram, como o Código de Bioética e a ampliação do Código dos Direitos Humanos.

 

“Promover o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, assegurando o respeito pela vida dos seres humanos e pelas liberdades fundamentais, consistentes com a legislação internacional de direitos humanos”. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.

 

A existência de fatores externos, como os políticos, segundo Bonella, interfere no regimento da bioética e, por consequência, nem todos médicos agem conforme a bioética desde a sua formação. “Você pode perguntar para qualquer tipo de profissional se todos agem de acordo com a ética profissional esperada e a resposta é que não”, opina.

Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos, o estudo desenvolvido necessitou de aprovação, validada no dia 11/03, no Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP), da UFU. Vitorino, que está orientando a pesquisa, afirma que ela será importante para evidenciar qual tem sido o comportamento médico e qual o nível de conhecimento dos médicos ao caso específico das testemunhas de Jeová. Isso possibilitará, segundo ele, um maior conhecimento para futuras intervenções, conciliação entre as partes, ou até em ações de capacitação para médicos.

O próximo passo da iniciação científica é o levantamento e a construção de gráficos da incidência do problema nas instituições de saúde na cidade de Uberlândia. Também será avaliado, por meio de questionário na perspectiva bioético-legal com 27 questões, a conduta de aproximadamente 50 médicos cirurgiões, que estejam em plena atuação e com registro ativo no Conselho Federal de Medicina (CFM).

 

O Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU) será um dos locais de aplicação da pesquisa. (Foto: Matheus Minuncio)

 

Além disso, a pesquisa apontará as diferenças nos atendimentos público e particular do município. “Se você for no particular e apontar essa objeção à transfusão de sangue, prontamente eles te atendem. Se você for no público não te atendem“, comenta Santos.

O término da pesquisa está previsto para dezembro de 2020; porém, já foi possível apontar as hemoterapias alternativas como solução prévia para o problema. Mas, segundo Santos, não existe a estrutura econômica necessária no Sistema Único de Saúde (SUS). “O SUS não dá o suporte; então, entra na questão da reserva do possível, aquela reserva emergencial que o governo tem que usar para determinados fatores, mas que para a pessoa testemunha de Jeová o SUS não vai usar”, expõe.

Para Bonella, a discussão da relação médico e paciente é importante porque parte de todo um contexto geral da discussão sobre políticas públicas de saúde no Brasil. “Tenho muita curiosidade de conhecer o resultado dessa pesquisa“, conta.

 

Decisões oficiais

Em julho de 2019, o Conselho Federal de Medicina determinou normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes. Foi estabelecido que o médico que vier a atender qualquer paciente deve respeitar as decisões desse paciente ou de seu representante legal, exceto em casos de menores de idade ou adultos que não estejam conscientes.

A posição da maioria do bioeticistas, como a do próprio Bonella, é o respeito à autonomia de pacientes adultos que estejam em condições de dar o seu próprio consentimento e sem coerção de terceiros. Mas, segundo o professor de Bioética, a autonomia do paciente ainda não está muito bem estabelecida nas leis. “Tem um negócio muito bonito: ‘deve-se respeitar a autonomia do paciente’. E, no final, ao invés de pôr ponto, coloca-se uma vírgula: ‘desde que não tenha risco de vida’. É esse o ponto; você nega o que veio antes”, aponta.

O direito das testemunhas de Jeová a tratamento médico sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa, passa por julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de um recurso extraordinário requerido, no estado de Alagoas, por uma paciente que desejava fazer uma cirurgia no coração sem receber transfusão de sangue, mas teve seu pedido negado devido aos riscos cirúrgicos envolvidos. Em decisão unânime, foi reconhecida a existência de repercussão geral da questão constitucional solicitada de acesso à saúde.

No momento, os autos do processo estão em mãos do relator, ministro Gilmar Mendes, para que ele faça o parecer do caso para apresentar aos demais membros do Tribunal, que poderão acatar ou não sua decisão. Segundo Vitorino, orientador de pesquisa e líder de pesquisa do Cedire, seja para qual lado for essa decisão, vai ser importante para fazer direcionamento mais claro de como os médicos devem agir, em busca de uma conciliação, porque é um dilema para eles também. “A minha perspectiva é que o fato da pessoa ser adulta, ter consciência e as informações suficientes não pode ser desprezado. Mas, ao mesmo tempo, os médicos não poderiam ser responsabilizados por um resultado indesejado”, conclui.

 

Palavras-chave: BIOÉTICA TESTEMUNHAS DE JEOVÁ TRANSFUSÃO DE SANGUE Pesquisa Científica

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