Publicado em 19/05/2020 às 14:00 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52
Hospital de emergência durante a gripe espanhola, Kansas (EUA), 1918 (Foto: Otis Historical Archives, National Museum of Health and Medicine)
Em 1918, quando a influenza, conhecida por muitos como “gripe espanhola”, se espalhou pelo mundo causou temor e pânico. Em setembro daquele ano, trazida pelos navios, a doença se difundiu rapidamente por várias cidades brasileiras, como Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Pouco mais de cem anos depois, estamos diante de uma nova pandemia, a Covid-19 (causada pelo novo coronavírus), que igualmente causa apreensão e necessidade de enfrentamento por parte da sociedade e da ciência.
O que a pandemia de 1918 pode nos ensinar hoje? Quais as questões que ela coloca para pensarmos sobre o coronavírus? Essas questões podem ser respondidas a partir de alguns pontos relevantes do ponto de vista da história de ambas as pandemias.
1. Não se pode subestimar as doenças
“O alarme tem sido infundado, porque a moléstia, apesar de sua grande contagiosidade, tem reinado com caráter benigno”. O texto faz parte de um comunicado do Serviço Sanitário de São Paulo, divulgado pela imprensa em outubro de 1918, a respeito da gripe espanhola. Naquele período, a doença foi subestimada por parte da classe médica brasileira, conforme relata a historiadora Anny Torres Silveira, na obra "A influenza espanhola e a cidade planejada - Belo Horizonte, 1918" (Belo Horizonte, Ed. Argvmentvum, 2008). Entretanto, logo a realidade do número de doentes e o aumento progressivo de mortes se impuseram sobre a ideia de que se tratava de uma simples gripe.
Diante disso, autoridades sanitárias tomaram diversas providências. Liane Martia Bertucci, autora do livro "Influenza, a medicina enferma" (Campinas, Ed. Unicamp, 2004), ao estudar a gripe espanhola em São Paulo, mostra que, naquele período, a prevenção foi a melhor forma de combater a enfermidade. Independente dos esforços governamentais, caberia principalmente às pessoas evitarem sua propagação, por meio do isolamento e de adoção de medidas higiênicas. Nesse sentido, o Serviço Sanitário daquele Estado determinou várias ações com o objetivo de diminuir o contágio, como o fechamento de escolas, proibição de acompanhamentos aos enterros, dentre outras ações de isolamento social. Tais medidas, embora fossem contra a liberdade dos cidadãos, mostravam-se extremamente necessárias.
Após cem anos, as reações diante do coronavírus indicam várias semelhanças com o passado. Uma delas é a lentidão em aceitar a presença da doença ou mesmo a de negação. Apesar da ampla disseminação do vírus, ele foi recebido por muitos, incluindo governantes, como uma simples gripe. Apesar de algumas pessoas ainda negarem seus efeitos sobre a saúde individual e coletiva – como a alta taxa de mortalidade quando comparada a outras doenças –, cientistas, médicos e outros profissionais da área de saúde buscaram logo esclarecer às populações sobre a importância do isolamento social, bem como a atenção a hábitos de higiene simples, como lavar as mãos, para conter o ritmo de contágio dos vírus. As medidas têm a finalidade não só preventiva, como também a de evitar sobrecarregar os sistemas de saúde.
2. Não existe remédio milagroso
Quando a gripe espanhola se espalhou rapidamente nas cidades brasileiras, uma série de terapias e remédios surgiram com a promessa de curar a enfermidade. Um desses medicamentos era o sal de quinino, substância, extraída da casca de uma planta sul-americana conhecida como quina, utilizada desde o século XVII para o combate às febres, em particular a malária. Ao ser recomendado como medicamento oficial pelo Serviço Sanitário de São Paulo, o uso de quinino como possível preventivo contra a gripe espanhola ganhou as páginas dos jornais da época, levando a uma corrida desenfreada às farmácias. Junto a esse medicamento, eram comercializados outros pelo próprio Serviço Sanitário do Estado, como mentol, essência de canela, vaselina mentolada, dentre outros.
Algumas receitas caseiras, como limão, ervas e raízes, estavam incorporadas ao universo das práticas populares e da medicina oficial para conter a gripe espanhola. Entretanto, muitos dos remédios indicados não passavam pelo controle do Serviço Sanitário. Era o caso das ervas, xaropadas, elixires, água benta e outros compostos, vendidos por indivíduos que se apresentavam como curandeiros e prometiam curar a gripe espanhola, explorando a crença de parte da população que, com medo da doença, buscava auxílio em qualquer novidade. Apesar de uma diversidade considerável de soluções terapêuticas apresentadas, nenhuma se consolidou como tratamento efetivo daquela pandemia.
A história parece se repetir. Quando o novo coronavírus se tornou uma realidade entre nós, logo se espalhou uma série de boatos sobre a existência de receitas miraculosas com a promessa de prevenir ou curar a doença. No campo dos medicamentos, a cloroquina e a hidroxicloroquina, utilizadas no tratamento de outras enfermidades, talvez sejam aquelas em torno das quais mais existam polêmicas. Após a notícia de que supostamente poderiam ser usadas no tratamento da Covid-19, várias pessoas correram às farmácias, tornando o medicamento indisponível para vários pacientes que necessitam do remédio. Tal fato levou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passar a exigir receita médica para sua venda nas farmácias. Sobre sua eficácia ainda restam muitas dúvidas. Estudo recente publicado em importante revista científica (The New England Journal of Medicine) mostrou que a substância não teve os efeitos esperados. Apesar disso, os métodos utilizados na forma de levantamento de dados foram questionados e a Fiocruz e a Fundação de Medicina Tropical farão uma nova pesquisa, conforme noticiado pela Folha de São Paulo (12 de maio de 2020). Médicos, profissionais de saúde, cientistas e gestores públicos comprometidos com a vida vêm alertando a população sobre as falsas curas, disseminadas entre a população, principalmente nas redes sociais e mensagens de aplicativos, como WhatsApp. Dentre esses falsos remédios podem ser mencionados o chá de erva doce e outras infusões, carregar bolsas de cânfora como forma de prevenção, dentre outras fórmulas milagrosas vendidas de forma inescrupulosa em sites ou até mesmo farmácias de manipulação. O fato é que, até o momento, não existe nenhum medicamento, vitamina, alimento ou vacina capaz de prevenir e/ou curar a doença com comprovação científica.
3. A ciência e a informação são relevantes
Se em 1918, as pessoas tinham pouco acesso às notícias e aos dados para o enfrentamento da gripe espanhola, já que os meios disponíveis eram os comunicados nos jornais impressos e o material elaborado pelos órgãos de saúde, em 2020, um dos problemas tem sido a qualidade de certas informações e o impacto das notícias falsas (fake news). Diante disso, é preciso buscar conhecimento sobre o coronavírus em fontes confiáveis, ouvir especialistas - cientistas, epidemiologistas, médicos e outros profissionais da área - e confiar na divulgação de dados dos órgãos de saúde e instituições de ensino, como as universidades e os institutos federais. O próprio Ministério da saúde criou uma página para saber o que é verdade ou falso: www.saude.gov.br/fakenews/coronavirus. Importa, ainda, destacar o papel das ciências humanas e dos educadores de forma geral nesse processo de divulgação da ciência e educação da população.
A história da doença, como alguns epidemiologistas gostam de dizer, ainda está sendo escrita. Enquanto os cientistas aprendem e desenvolvem pesquisas em torno de medicamentos e vacinas, cabe à história alertar sobre o que a gripe espanhola nos deixou como principal lição: a importância da prevenção e das medidas de higiene como profiláticas no combate ao coronavírus.
*Jean L. N. Abreu é professor do Instituto de História, com doutorado na área. Desenvolve pesquisas com ênfase na história da saúde e da doença e história da ciência. Esse texto está relacionado ao projeto “Entre remédios e feitiços: políticas de saúde e práticas de cura em Minas Gerais em perspectiva comparativa (1890-1930)”- Fapemig/MG. Agradeço a leitura e contribuição da professora Anny Jackeline Torres Silveira, que integra o projeto.
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Palavras-chave: Leia Cientistas Ciência história Pandemias coronavírus
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