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HISTÓRIA

O que as revistas infantis ensinam sobre o que é ser homem?

Jornalista analisou, em pesquisa de mestrado, as publicações da revista ‘O Tico-Tico’ do início do século XX

Publicado em 17/07/2020 às 16:41 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52

‘O Tico-Tico’ é considerada a primeira revista em quadrinhos do Brasil.

Em fevereiro de 2015, a parceria acadêmica entre o jornalista Carlos Gabriel Ferreira da Silva e a professora Raquel Discini de Campos - docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (Faced/UFU) - começou a dar resultados: ela fez parte da banca do trabalho de conclusão de curso (TCC) do então aluno de graduação em Comunicação Social. Na época, o TCC analisou a masculinidade na revista "Recreio". Em 2018, a dupla de pesquisadores se reencontrou no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias, Comunicação e Educação para investigar esse assunto na histórica revista "O Tico-Tico".

Essa publicação é considerada a primeira revista brasileira escrita - e desenhada - para o público infantil. A primeira edição data de 1905, e o periódico circulou até 1962. A pesquisa da UFU analisou as primeiras edições (1905-1906), que eram recheadas de contos, histórias em quadrinhos, concursos de talentos e charadas. Em relação à masculinidade, Silva destacou três aspectos contidos na revista: trabalho, saúde e castigo.

Na sociedade brasileira da época, a criança era vista como um futuro trabalhador. Por isso, era necessário fomentar o interesse em profissões para o progresso do país, como as que envolviam eletricidade e engenharia. De acordo com o pesquisador,  "O Tico-Tico" surgiu como uma necessidade de educar as crianças em uma sociedade recém-saída do regime de escravidão. 

“O seu papel em formar os futuros trabalhadores era presente e constante. 'O Tico-Tico' dignificou o trabalho, principalmente aquele que, aliado à força de vontade e à perseverança, seria o resultado de uma educação qualificada e com perspectiva ao futuro. Era preciso ser humilde e, ainda assim, investir nas chamadas 'profissões do futuro',” explica Silva.

Charge da revista O Tico-Tico, da edição 17 de 1906. Título: Esta’ um homem! — Eu é que não brinco mais disso. Nâo vé que sou criança como elles! Estou quasi um homem e um homem só trata de cousas serias !... — Oh ! siranda, oh ! sirandinha, Vamos todos sirandar! Vamos dar a meia volta, Volta e meia vamos dar!

 

Para que o menino crescesse e virasse um bom trabalhador, era preciso ser saudável. Por isso, a revista incluía noções de saúde e cuidado com o corpo como condição de ser um bom homem, em meio às páginas de desenho e quadrinhos.

“O asseio é uma das principaes condições da saude e também uma qualidade essencial para ser bem recebido por toda a gente. Uma criança por mais bonita que seja, torna-se feia quando é pouco asseiada”, explicaram os editores da edição 51 da revista.

 

Trecho de artigo orientando contra o tabagismo entre as crianças, publicado na edição 36 no ano 1906.

 

Por fim, o castigo era representado explicitamente para as crianças que não respeitavam as orientações dos adultos. Enquanto, para os meninos, o castigo era retratado de forma física e utilizando a violência, as meninas eram castigadas nas histórias da revista de forma psicológica, como aparições em sonhos. A surra fazia parte da construção de um homem, de acordo com as ilustrações de "O Tico-Tico".

Segundo Silva, “o sofrimento físico, representado nas diversas ilustrações e narrativas, era visto sob o dogma da criação dos homens verdadeiros. O castigo disciplinar surgia como uma precaução diante dos desvios de um padrão [de comportamento] estabelecido. Mesmo que não ilustrado, o castigo estava nas narrativas ou nas descrições dos quadrinhos. Tinham um teor educativo”.

 

Representação do castigo físico na edição 17, de 1906.

 

O trabalho foi realizado graças ao acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, que disponibiliza grande parte das edições da revista "O Tico-Tico". Por ter feito um mestrado profissional, o jornalista criou um catálogo para divulgar os resultados da pesquisa e trechos das edições de "O Tico-Tico". Ele tem planos de publicá-lo e está submetendo o produto final às editoras. “Eu analisei três temáticas: o castigo, o trabalho e a saúde. Ainda há diversos temas que podem render pesquisas fenomenais. 'O Tico-Tico' é um grande recurso de análise”, conclui.

Capa do catálogo temático escrito e diagramado pelo jornalista. (Foto: arquivo do pesquisador)

 

Homens e mulheres na imprensa brasileira

 

Raquel Discini Campos é historiadora e orientou TCCs, dissertações e teses sobre gênero, educação e imprensa. Nesta entrevista, ela explica a importância de estudar as representações de gênero no jornalismo brasileiro.

 

Como você decidiu trabalhar com esse tema?

 

Existe um caráter subjetivo no meu interesse por esse tipo de pesquisa que envolve [jornalismo] impresso e educação. Eu sou uma leitora de jornais desde que eu me conheço por gente, de revista também. E eu percebo o quanto essa leitura de impressos, em geral, e de revistas femininas, em particular, influenciou a minha formação e o meu entendimento de mundo. Quando eu entrei na universidade, fui além do senso comum. Aí a gente começa a questionar os próprios hábitos de leitura. Assim, eu entendi que esses impressos faziam parte de uma cultura que vai além da materialidade da revista. Trata-se de uma cultura que remonta há longuíssimas tradições relacionadas aos modos de ver e de entender os seres humanos no mundo, principalmente as mulheres.

 

Por que é importante olhar para trás e estudar as relações de gênero em revistas e em jornais?

 

A importância dos estudos da história em geral tem uma fundamentação no nosso espanto com aquilo que parece óbvio. É isso que o historiador faz: ele se espanta diante do óbvio. É "óbvio" que as mulheres têm que ser altas, magras e belas? O senso comum diz que sim. Mas, espera aí: que obviedade é essa? É "óbvio' que os homens têm que ser viris, provedores, durões? O senso comum é da ordem da obviedade. O historiador tem a função de questionar a naturalidade das coisas que não são naturais. Então, diferentemente desse céu que eu estou olhando, da ordem na natureza, as relações humanas em geral são da ordem social. E elas não são naturais, apesar de serem naturalizadas. Por exemplo: a desigualdade social é naturalizada pelos homens. E justamente por isso ela pode ser questionada e modificada. 

 

Os (pré)conceitos sobre o gênero na imprensa ainda persistem ou muitas coisas mudaram?

 

A gente tem hoje muitas mudanças. E mudanças altamente positivas. Por exemplo: o Carlos identificou no trabalho dele que o castigo físico era altamente comum e rotineiro para os meninos de 100 anos atrás. Pelo menos discursivamente, o castigo físico é repudiado nos dias atuais. Houve uma mudança. 100 anos atrás era comum falar da importância da mulher ser uma boa dona de casa. Atualmente, fala-se da importância de uma mulher instruída para ser o que quiser, inclusive dona de casa. Há 100 anos, a ideia era que os meninos tivessem uma determinada virilidade misturada com uma prática machista. Hoje em dia, a gente entende, pelo menos na imprensa, que a virilidade não está relacionada ao machismo tóxico. Ou seja, a gente evoluiu muito em um século de história. Mas ainda temos muitos desafios a superar.

O pesquisador Carlos Gabriel Ferreira da Silva e a orientadora Raquel Discini na banca online do Mestrado Profissional. (Imagem: arquivo do pesquisador)

 

Palavras-chave: Jornalismo história Imprensa Quadrinhos Masculinidade

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