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Leia Cientistas

Se podes ver, repara no Afeganistão

Quem são os Talibã, que fatores nos ajudam a entender sua vitória atual, e o que esperar agora?

Publicado em 17/08/2021 às 13:48 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:51

'As violações contra mulheres e minorias afegãs foram cruéis' (foto: Fardin Waezi / UNAMA / Fotos Públicas)

Muitos olharam para o Afeganistão, mas provavelmente, como diria José Saramago, poucos repararam no que de fato estava ocorrendo. Para compreendermos a situação atual, devemos refletir sobre três questões: quem são os Talibã, que fatores nos ajudam a entender sua vitória atual, e o que esperar agora.

Após a invasão soviética (1979-1989), a resistência afegã se dividiu, sendo financiada e treinada por atores internacionais relevantes, como os EUA, que treinou diversos grupos à época denominados “combatentes da liberdade”. O custo altíssimo da ocupação fez com que os soviéticos se retirassem. Com as atenções internacionais concentradas no colapso da URSS e, posteriormente, com a invasão do Kuwait pelo Iraque (1991), o Afeganistão foi mais uma vez relegado, com um governo sem recursos para projetar poder pelo seu território.

A guerra civil (1992-1996) no país permitiu que países como Paquistão e Arábia Saudita procurassem ampliar ainda mais a sua influência frente o vácuo deixado pela URSS, financiando grupos que disputavam o controle do país. Uma questão central a ser destacada é que a divisão dos grupos internos contendores enfraquecia o governo central, porém impedia que qualquer um deles tivesse condições suficientes para tomar o poder. É dentro desse quadro que emerge o Talibã.

Pregando uma islamização do país, a partir de 1994 os Talibã paulatinamente angariam apoio da população e, após vitórias expressivas, passaram a chamar a atenção do Paquistão. O que até então era uma milícia relativamente simples, com financiamento externo passou a ser um grupo armado importante. Em setembro de 1996 tomaram Cabul e iniciaram um regime de terror no país, que estampou manchetes no mundo todo devido a agressões a mulheres e minorias étnicas e religiosas.

São várias as razões que podem nos ajudar a compreender a vitória atual do Talibã. Aqui quero chamar a atenção para o processo de paz iniciado após a queda do Talibã em 2001, os chamados Acordos de Bonn.

O primeiro traço central dos acordos de Bonn foi a exclusão de grupo políticos importantes. Os Talibã foram excluídos, mas com eles uma parcela substantiva dos pashtun, maior etnia no país, também não se sentiu acolhida. Atores regionais importantes tiveram pouquíssimo espaço, particularmente Paquistão e Irã.

Não menos importante, a diretriz central dos EUA pode ser sintetizada como uma militarização do processo, em que a busca por Bin Laden se tornou a chave orientadora das ações no país. Não à toa, os EUA ficaram responsáveis pelo treinamento e financiamento do exército afegão, enquanto países como Japão, Alemanha e Itália, assim como a ONU e OTAN, responsabilizaram-se por demais aspectos da reconstrução.

O exército afegão tinha mais de 300.000 soldados e receberam treinamentos específicos para os objetivos dos EUA no país. Esse treinamento custou caro, e o Afeganistão não tinha receitas próprias, de modo que a ajuda externa financiava parte substantiva das despesas. Um exército de grandes proporções sustentado por financiamento externo imprevisível, não é uma opção adequada. O resultado vimos no último dia 15 de agosto.

O que esperar? Restrinjo-me a dois pontos. Em primeiro lugar, a sustentação de um novo governo Talibã dependerá muito de apoios externos. China vem se aproximando devido a interesses econômicos, e recentemente reconheceu os Talibã como importante força política no Afeganistão. Paquistão continua a ser ator relevante, devido à longa faixa de fronteira que compartilham. Rússia está interessada na estabilidade do país por questões de segurança e um tema que chama a atenção do Irã é relativo à questão dos refugiados.

O segundo ponto é relativo à proteção de direitos humanos. No passado, as violações contra mulheres e minorias afegãs foram cruéis. Não se sabe se o Talibã de agora está mais moderado, e se o pragmatismo econômico poderia domá-lo. As primeiras impressões não são animadoras.

Voltando a Saramago, é preciso reparar no Afeganistão, pois foi a cegueira internacional um dos principais fatores que levou a esta tão trágica quadra histórica do país.

 

*Aureo Toledo Gomes é docente no Instituto de Economia e Relações Internacionais na Universidade Federal de Uberlândia (Ieri/UFU).

 

- Texto publicado no jornal Estadão.

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Palavras-chave: Afeganistão Relações Internacionais Geopolítica Taleban Divulgação Científica

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