Publicado em 19/12/2022 às 15:13 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:39
[...] Se você, leitora soubesse!
... Você, que a cada noite se entrega a sombrios pensamentos quando o espelho lhe mostra com evidência uma silhueta imperfeita...
... Você, que ao manifestar-se a “idade madura”, não vê mais que uma figura a engordar...
... Se soubesse que só de você mesma depende ser uma mulher nova e de que modo simples, glorioso e infalível! Você não tem o direito de abandonar tôda a disciplina do corpo a não ser que seja... tão insensível a ponto de não sofrer ao ler nos olhos daquele que ama que a compara desfavoravelmente com uma mulher bem feita de corpo [...]. (DYRA, 1956, p. 3).
Imagine folhear diariamente um jornal de circulação nacional. Um impresso destinado a grupos mais abastados que reunia grandes nomes da literatura, da política e do jornalismo, como Rui Barbosa, José Veríssimo, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, José Lino Grünewald, Marcio Moreira Alves, Ruy Castro, Janio de Freitas, Fuad Atala, Germana de Lamare, entre outros. Com aura de responsabilidade, o Correio da Manhã (1901-1974), produzido no Rio de Janeiro, era lido em todo o país. Considerado um dos mais prestigiosos periódicos que circularam no Brasil no século XX, num tempo em que o impresso era apontado como “uma força poderosa”, o diário desperta a atenção de pesquisadores históricos por seu envolvimento com questões políticas que levaram a importantes acontecimentos nacionais, como o Regime Militar (1964-1985).
Mas, à margem dos editoriais e das editorias geralmente classificadas como nobres, como as que ocupam historicamente os primeiros cadernos, procurei analisar as seções e suplementos que o Correio destinou à leitura das mulheres. São aquelas páginas geralmente avulsas dirigidas ao universo feminino, por onde encontramos, durante anos, ensinamentos e conselhos sobre embelezamento, moda, educação dos filhos, decoração do lar, receitas culinárias e outros tantos segredos, antes confinados entre espaços privados, sobre o ser mulher.
Além das paredes escolares, como um impresso contribuiu para educar o corpo feminino? O que nos fez assim tal qual somos hoje? Para buscar dar sentidos ao presente, investiguei as páginas femininas do Correio da Manhã de 1925 – quando se encontram as primeiras seções que mantiveram certa periodicidade – a 1972, ano em que foram divulgados os últimos cadernos do jornal. Um recorte amplo que nos ajuda a entender as pedagogias da beleza que circularam em reportagens, colunas e anúncios publicitários.
O que era ser bela no século XX? "A bela é a mulher magra e jovem", repetia todos os dias o jornal. Um ideal de presença modulado por um dever-ser. Na esteira de outras indústrias, como moda, cosméticos, publicidade e Hollywood, a imprensa também contribuiu para a consagração do corpo esguio no mundo ocidental. Esbelto e liso. Afinal, ensinava o jornal, engordar e expor rugas poderia significar solidão, isolamento, banimento. Antes considerada como um dom divino, mais tarde como obra da natureza, foi no século XX que ser bela, para as mulheres, passou a ser uma obrigação, resultado de características como autovigilância e perseverança. Convidada a construir o próprio corpo, agora apontado como um mero rascunho, e a conservar a boa forma, à mulher foi ensinado que beleza, além de ser um ato de autoapropriação e fruto de disciplina, também é um mecanismo de distinção social (e de barganha no casamento).
Na maioria dos textos e imagens analisados nos suplementos femininos do Correio da Manhã, a beleza propagada pelo impresso estava caracterizada como esbeltez/esbelteza, graça, frescor, agilidade juvenil – intimamente ligada a um corpo esguio, leve, magro, que apresente cintura fina, músculos fluidos, silhueta delgada e linhas retas. O avesso de quem não obtivesse esse corpo idealizado foi designado como corpulenta, gorda, rotunda, velha, saco de batatas, exemplo de fealdade feminina – mulheres, enfim, consideradas, pelo impresso, como desleixadas ou fracassadas.
Quanto daquele passado ainda pesa em nosso presente? Quantas receitas e exemplos de transformação do corpo nos são oferecidos? Diante da avalanche de conselhos, quantos conseguem atravessar a fronteira idealizada? “A linha de chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores; mas a maioria dos corredores na pista tem músculos muito flácidos e pulmões muito pequenos para correr velozmente”, escreveu o sociólogo Zygmunt Bauman. A corrida contra o tempo, às vezes, pode parecer sedutora. Ao considerar o corpo humano um esboço, os "especialistas" e colunistas apresentam a todo instante orientações técnicas e científicas para que melhoremos o desempenho desse rascunho. Mas o corpo não é máquina, lembra o sociólogo e antropólogo Le Breton. Se fosse, escaparia do envelhecimento, da fragilidade e da morte. E você? Quais são seus limites e como escolheu lidar com a repetitiva pedagogia da beleza, com a gramática da elegância e com a angústia do tempo que se esvai inexoravelmente?
Suplemento Assumptos Femininos (10 jan. 1937). Fonte: Fundação Biblioteca Nacional (2016)
*Renata Neiva é jornalista e doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFU. Autora do livro "Pedagogias da Beleza: as páginas femininas do Correio da Manhã" (Edufu, 2020).
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