Pular para o conteúdo principal
LEIA CIENTISTAS

Para além das letras, minha voz reexiste

No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a seção 'Leia Cientistas' conta com as reflexões de “uma mulher preta que estuda uma mulher preta escritora”

Publicado em 25/07/2024 às 10:10 - Atualizado em 31/07/2024 às 12:57

Arte: Igor Herrera

Acredito que desde que aprendi com nossas/os intelectuais negras/os sobre a relevância da autodefinição, sobre existir – principalmente epistemicamente, longe das definições distanciadas de um Outro, que só é hegemônico devido a um processo de violência histórica –, pude entender que vozear é necessário em todos os espaços que ocupamos, inclusive enquanto pesquisadoras e acadêmicas negras. Na minha jornada até aqui, o racismo acadêmico tentou barrar a minha possibilidade de existir epistemologicamente nesse espaço. Uma intelectual branca, a Miranda Fricker (2007), fala de injustiça epistêmica, que é composta por duas estratégias coloniais: a objetificação epistêmica e o silenciamento. 

É sobre isso que se trata a minha pesquisa de doutorado em andamento, intitulada “Da encruzilhada, a palavra-pensante: a poética epistêmica de Miriam Alves”. Após quase quatro anos afastada do espaço acadêmico, eu retorno para realizar essa pesquisa que tem se construído pela raiva, criatividade e provocações. Quando digo raiva, não estou falando de ressentimento, mas parto daquilo que Audre Lorde fala sobre transformar a raiva em linguagem e ação para obtermos mudança, no caso, no campo das produções de saberes, principalmente sobre a Literatura. 

Miriam Alves é uma escritora que completa 40 anos de carreira neste ano de 2024. Eu a conheci em 2013, quando era ainda graduanda no curso de Letras na Universidade Federal de Viçosa (UFV). A escrita dela me tocou, eu me identifiquei, foi a primeira autora negra que eu li na vida. Ver a foto de Miriam Alves em um livro, mesmo ainda não a conhecendo, fez com que eu desse pulos de alegria, porque uma mulher como eu estava em um livro enquanto autora. Sobre o negro, há representações diversas ao longo da literatura, muitas delas estereotipadas por um olhar branco sobre o mundo. Então, quando começam a ser reconhecidas e a ganhar certa visibilidade, as escritas de pessoas negras – em especial das mulheres negras, nosso jeun¹ do nosso preto Espírito –, percebi que o enquadramento delas em teorias e conceitos eurocentrados e brancos limitava a análise do texto literário de autoria negra. Isso foi o que me motivou a pesquisar literatura negra.

Eu sou uma preta que estuda uma mulher preta escritora e que utiliza de intelectuais negras/os para isso. Quando eram apenas homens brancos estudando homens brancos e utilizando homens brancos como referenciais teóricos, isso não causou estranhamento no espaço acadêmico, porque já era visto como natural, a real ordem das coisas. No entanto, quando decido fazer isso, como outras pessoas negras também o fazem, o espaço de relações acadêmicas se tornou um espaço insalubre para nossa construção enquanto pesquisador e intelectual, além dos conflitos que nossas presenças geram no espaço. Eu tive a sorte de ter três orientações enquanto faço doutorado; o último não me silencia, nem me oprime ou espera de mim submissão, isso é fundamental para que mulheres negras como eu sobrevivam nesse espaço. Apesar de brancos, professores e professoras não devem oferecer a nós apenas uma pedagogia colonial: devem entender que, com o advento das cotas raciais e também diante das tantas e incansáveis reivindicações do movimento negro, as presenças negras no espaço universitário devem ser respeitadas sem negligenciar o nosso lugar de sujeito epistêmico.

O dia 25 de julho é o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha – e quantas mulheres negras são professoras universitárias? Ou estão em alguma posição de poder que lhes permita tomar decisões importantes para outras pessoas? No programa de pós que eu faço parte, não encontrei nenhuma mulher negra lecionando, mas tive uma professora branca, a Joana Muylaert, que foi a pessoa mais antirracista que eu conheci no curso de doutorado e olha que as bases epistêmicas dela eram europeias e brancas, mas pela escuta e acolhimento, em sua pedagogia da diversidade, ela recebia questionamento sem se sentir com o ego ferido e assim, por um ano, tive a melhor experiência na UFU de aprendizagem sobre literatura de modo geral. 

Enquanto o contexto não se torna favorável para uma diversidade de corpos no âmbito docente das universidades, professores apoiadores da questão, a “branquitude aliada”, sem colonialidade em suas práticas, precisam compreender que nossas trajetórias são marcadas pelas pedagogias que escolhem. A opressão não é pedagogia, é tecnologia de mentecídio: ela não deve ser tolerada por ninguém. Nossas existências aqui só serão plenamente saudáveis quando não precisarmos passar por situações racistas motivadas pela pedagogia colonial de construção de saberes. Saúdo todas as mulheres negras desta instituição, desejo-lhes: fé para enfrentar esses... egos de algodão que não aceitam nossas existências fora da lógica da subordinação. Somos quilombo. 

 

¹ Jeun é comer em Iorubá. A literatura brasileira de autoria negra alimenta nossa consciência para o enfrentamento do cotidiano racista e nos dá força para aquilombar.

 

* Juliana Sankofa, sobrenome artístico de Juliana Cristina Costa, é escritora, pretativista e doutoranda em estudos literários na PPGELIT UFU. Pesquisadora vinculada ao NEAB UFU, ex-integrante do NEAB Viçosa e também integrante dos grupos de pesquisa O sexo da palavra e Pesquisa Gorda.

 

A seção "Leia Cientistas" reúne textos de divulgação científica escritos por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São produzidos por professores, técnicos e/ou estudantes de diferentes áreas do conhecimento. A publicação é feita pela Divisão de Divulgação Científica da Diretoria de Comunicação Social (Dirco/UFU), mas os textos são de responsabilidade do(s) autor(es) e não representam, necessariamente, a opinião da UFU e/ou da Dirco. Quer enviar seu texto? Acesse: www.comunica.ufu.br/divulgacao. Se você já enviou o seu texto, aguarde que ele deve ser publicado nos próximos dias.

 

 

Política de uso: A reprodução de textos, fotografias e outros conteúdos publicados pela Diretoria de Comunicação Social da Universidade Federal de Uberlândia (Dirco/UFU) é livre; porém, solicitamos que seja(m) citado(s) o(s) autor(es) e o Portal Comunica UFU.

 

Palavras-chave: Leia Cientistas Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha literatura Miriam Alves

A11y