Publicado em 20/01/2020 às 15:26 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52
Sepultamento das vítimas da Chacina de Felisburgo. (Foto: Arquivo do Esajup)
A Chacina de Felisburgo, ocorrida em Felisburgo, cidade situada no nordeste de Minas Gerais, completou 15 anos. Segundo denúncia do Ministério Público, no dia 20 de novembro de 2004, o fazendeiro Adriano Chafik Luedy, acompanhado por 14 homens armados, dirigiu-se ao acampamento Terra Prometida e comandou um ataque contra mais de 200 famílias. Cinco pessoas foram assassinadas, 12 foram baleadas e inúmeras casas e plantações ficaram arrasadas. Um incêndio, apontado pelo Ministério Público como criminoso, ainda destruiu 27 casas e uma escola do assentamento de trabalhadores rurais sem-terra situado na Fazenda Alegria.
Chafik se considerava dono da Fazenda Alegria em 2004, quando um grupo liderado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocupou uma área da propriedade ao saber que se tratavam de terras devolutas, que eram públicas, sem destinação pelo poder público e que em nenhum momento integraram um patrimônio particular, ainda que estivessem sob posse irregular de Chafik.
O fazendeiro entrou com um processo na Justiça pedindo a reintegração de posse, mas perdeu a ação e as terras foram demarcadas em favor dos assentados. Segundo o MP, o fazendeiro ficou inconformado com a derrota e reuniu os 14 homens que passaram a ameaçar os assentados. Em novembro de 2004, Chafik, ainda de acordo com a acusação, ordenou o ataque.
Em 2015, o então governador do estado, Fernando Pimentel (PT), desapropriou a Fazenda Alegria, em um decreto que reuniu ainda outras duas propriedades, uma delas também no Vale do Jequitinhonha e outra no Sul de Minas. A medida beneficiou 352 famílias de trabalhadores rurais sem-terra. Dos 15 réus envolvidos na Chacina de Felisburgo, quatro já foram condenados, incluindo Chafik, que foi julgado em 2013 e condenado a 115 anos de prisão.
A relação com a UFU
O prédio do Esajup está localizado no bloco 5V, do Campus Santa Mônica, na cidade de Uberlândia. (Foto: Marco Cavalcanti)
O que liga esse caso à Universidade Federal de Uberlândia (UFU) é o pedido de ajuda feito pelo MST ao Escritório de Assessoria Jurídica Popular (Esajup) da universidade, para que as ações de reparo fossem continuadas e o apoio necessário às famílias afetadas fosse dado.
De acordo com Neiva Flávia de Oliveira, professora da Faculdade de Direito da UFU e coordenadora da Esajup, o estado de Minas Gerais entrou com ação discriminatória para verificar onde se encontravam as terras devolutas com o compromisso de, identificando essa área, alocar as famílias. As ações indenizatórias, no entanto, foram paralisadas “porque não tinham advogados, a defensoria nem funcionava naquele local. Então, elas [as famílias] foram muito prejudicadas, porque o Estado brasileiro não deu apoio”, conta Oliveira.
Ainda de acordo com a professora, quando o pedido de ajuda chegou, houve uma dúvida sobre como a atuação do escritório procederia, entendendo que, judicialmente, o caso havia acontecido no Vale do Jequitinhonha. Apesar disso, Oliveira ressalta que houve apoio da Procuradoria da Vara Agrária Estadual, de Belo Horizonte. O procurador Afonso Henrique forneceu a cópia do processo para estudo.
A partir daí, Oliveira consultou a professora Marrielle Maia, do curso de Relações Internacionais da UFU e que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos (Nupedh), com experiência na atuação em denúncias e petições junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); tendo ainda a ajuda de diversos outros professores das áreas de Direito Internacional e de Direitos Humanos da UFU.
Além do contato feito com essa equipe de professores, houve também a participação da advogada voluntária Marília Freitas e a criação de um grupo de estagiários que começaram a analisar os autos do processo para verificar se estava havendo demora ou não na execução das ações e se o Estado atendeu ou deixou de atender as pessoas e famílias vitimadas. O pesquisador do Nupedh, Rodrigo Assis Lima, estudou todas as denúncias que haviam sido feitas à Corte Interamericana dos Direitos Humanos em casos semelhantes.
A denúncia à Comissão
Depois que os estudos foram concluídos, o grupo entendeu que o caminho era realizar uma denúncia junto à Comissão Interamericana (órgão judicial autônomo, que tem sede em San José, Costa Rica, que faz parte do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e que recebe denúncias de casos graves de violação de Direitos Humanos dos países membros da Organização dos Estados Americanos - OEA), tendo em vista que o Estado brasileiro não estava executando medidas suficientes para fazer a reparação às famílias vitimadas na chacina. Quando se fala no Estado, consideram-se as três instâncias - poder Executivo, Legislativo e Judiciário - que, a partir das conclusões do estudo, não estavam dando a devida atenção ao caso.
A Comissão solicitou, então, que fosse feita uma coleta de informações in loco, sobre a situação das famílias. O grupo do Esajup foi a Felisburgo, realizou entrevistas, colheu depoimentos dos familiares afetados pela chacina e observou que o cenário era complexo, considerando que a cidade contava, à época, com um baixo efetivo policial para evitar que o crime acontecesse e ainda que, segundo os relatos, os homens contratados por Chafik tentaram dificultar o socorro aos feridos.
Assim que esse material foi reunido em acervo, os alunos analisaram, escreveram e produziram um documento, sob supervisão conjunta do Esajup e do Nupedh, que foi encaminhado à comissão. O último posicionamento do órgão interamericano, segundo Oliveira, foi o de aceitar as documentações enviadas e pedir esclarecimentos e o posicionamento do Brasil quanto ao caso. O pedido chegou ao Ministério da Justiça, que determinou que a Advocacia Geral da União buscasse mais informações sobre o andamento do caso na atualidade.
A coordenadora do Esajup conta que houve pouca evolução na discriminatória das terras e que as famílias de Felisburgo continuavam sem receber indenização ou qualquer amparo psicossocial, frente a tudo o que aconteceu durante os anos que se passaram.
A relevância do trabalho
Segundo Oliveira, os alunos dos cursos de Direito e de Relações Internacionais da UFU tiveram uma oportunidade única trabalhando no caso de Felisburgo. (Foto: Marco Cavalcanti)
O pedido de ajuda feito pelo MST chegou ao Esajup no final de 2016. Desde então, o escritório seguiu, passo a passo, as tramitações para acompanhar o caso e enviar as documentações necessárias para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, enquanto atualizava solicitações feitas pelo órgão internacional.
Segundo Oliveira, depois que as recomendações são feitas pela comissão, cabe ao país prestar esclarecimentos e, assim que for dada uma resposta, “a Corte vai avaliar se essas informações são suficientes. Se forem, eles devolvem [a documentação] e dizem: ‘olha, o Brasil já tomou as medidas necessárias para a devida reparação das famílias’. Se entenderem que não, eles fazem recomendações ao Brasil e o Estado precisa cumprir, se não quiser sofrer sanções”, explica a coordenadora.
Ainda de acordo com Oliveira, a comissão representa uma instância importante dentro da Organização dos Estados Americanos (OEA) e respeita a consensualidade e a soberania de cada país, no que diz respeito a recomendações que podem ser feitas, dependendo dos casos. A primeira atitude que uma comissão toma é a de notificar um país, para que este possa dizer quais medidas foram tomadas em um dado acontecimento. Em seguida, avalia esses esclarecimentos e, caso não resolvam o problema que foi apontado, faz recomendações (uma nova legislação, por exemplo). Se o país não cumpre com uma recomendação, a OEA então é notificada e pode tomar providências.
A professora Marrielle Maia esclarece que é preciso entender o sistema que recebe as denúncias. “[Esse sistema] é formado por dois mecanismos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que é onde o caso está atualmente, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que vai receber da comissão os casos que não conseguiram uma solução amistosa”, explica.
“A fase atual é de admissibilidade do processo, ou seja, da verificação se, de fato, a denúncia procede. O governo brasileiro é ouvido para poder se manifestar sobre a documentação que nós enviamos. A partir disso, a comissão analisa o mérito da questão e, entendendo que houve violação de direitos humanos, ela recomenda ações políticas e medidas que podem ser desde a adequação de legislação até medidas mais específicas para as vítimas e as famílias das vítimas, incluindo indenizações”, complementa Maia.
Para a professora, a grande vitória no processamento do caso de Felisburgo deve-se ao fato de que “o sistema recebe inúmeras petições todos os meses e o nosso trabalho, em conjunto com o Esajup e o Nupedh, permitiu que nós fizéssemos um documento que cumprisse todos os requisitos para que o caso fosse analisado. Isso, por si só, já é algo bastante relevante”.
Oliveira, por sua vez, destaca que todo o trabalho realizado tem dois pontos a serem ressaltados. “Primeiro, é importante para os alunos, que aprenderam uma coisa que provavelmente não vão aprender em qualquer escritório. Um escritório normalmente não faz petições para a Comissão Interamericana, então, os alunos que participaram aprenderam sobre tratados internacionais, acordos internacionais, legislação internacional e o que é e como funciona a Corte”, pontua.
“A segunda função é do papel de uma instituição, que é no combate às violações em Direitos Humanos. Nós passamos a perceber que a universidade, com a sua expertise, com professores de Relações Internacionais, de Direito Civil, de Direitos Humanos, [estiveram] unidos para buscar uma reparação. Nós começamos a ver uma extensão para muito além dos muros. Para muito além desse espaço e que essa atuação da universidade é fundamental no envolvimento com a sociedade”, finaliza.
Palavras-chave: Felisburgo direitos humanos Comissao Interamericana Esajup
Política de Cookies e Política de Privacidade
REDES SOCIAIS