Publicado em 03/08/2020 às 16:01 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52
Lobo-guará do Zoológico de Uberlândia (Foto: Kátia Gomes Facure Giaretta)
Antes de responder a essa pergunta, vou compartilhar com vocês uma experiência que eu tive com esse lobo-guará das fotos.
Mas o que um lobo-guará tem a ver com os nossos cães?
Lobos-guarás e cães domésticos pertencem ao mesmo grupo de mamíferos carnívoros, os Canidae, atualmente representados por 36 espécies e distribuídos em todos os continentes, com exceção da Antártida.
Através do exame dos fósseis, sabemos hoje que os canídeos evoluíram na América do Norte há 40 milhões de anos como predadores sociais que perseguiam suas presas (grandes herbívoros) em ambientes abertos (campos) por longas distâncias.
Adaptações para esse hábito de andar muito, chamado cursorial, incluem membros pouco flexíveis e uma grande resistência física. Para conseguirem capturar e matar as presas maiores do que eles próprios, os canídeos, que vivem em grupos, contam com a ação coordenada da matilha.
O comportamento social é muito desenvolvido entre os canídeos e eles apresentam várias formas de comunicação entre os membros do grupo, que incluem a vocalização de longa e curta distância (como uivos, latidos e rosnados), a comunicação visual (através de posturas, expressões faciais e mudanças na posição da cauda e das orelhas) e a comunicação olfativa. Nesse último aspecto, costumam deixar pistas da sua presença através de marcações com urina ou fezes, mas também podem capturar ativamente cheiros do ambiente se esfregando sobre carniça ou fezes. A função desse comportamento ainda é pouco compreendida, mas acredita-se que tenha função social e sirva para levar informações do ambiente para os outros membros do grupo ou ainda para criar uma espécie de perfume característico da matilha.
Esse ano eu tive a oportunidade de conhecer e fotografar o belo lobo-guará que vive no Zoológico de Uberlândia, em Minas Gerais. Para facilitar a aproximação, e fazer com que ele se movimentasse mais pelo recinto, para que eu pudesse esperar pela melhor luminosidade para capturar as melhores imagens do Mogli, decidi levar alguns alimentos que fazem parte da dieta dos meus cães, que seguem a Alimentação Natural Crua com Ossos da Dra. Sylvia Angélico. Sendo assim, eu escolhi levar aquilo que o Apollo e a Gaia mais gostam, como vísceras (fígado de frango e bovino, coração de frango e bovino), além de ovos, sardinhas (que eles não gostam tanto) e frutas, que eu sei que compõem aproximadamente metade da dieta dos lobos-guarás na Natureza. Enquanto o Mogli esperava no cambeamento, esses alimentos foram espalhados no chão por mim ao longo de todo o recinto, que tem uma área bem grande.
Apesar do seu nome popular, o lobo-guará não é tão próximo do lobo-cinzento do Hemisfério Norte e, portanto, nem do cachorro-doméstico. Na verdade, ele pertence ao grupo que inclui mais nove espécies de canídeos encontrados apenas na América do Sul. Essas espécies chegaram ao continente há cerca de 3 milhões de anos, quando se formou a ponte de terra ligando a América do Sul e a América do Norte, onde os canídeos evoluíram primeiro. Estima-se que a linhagem que deu origem aos lobos-guarás esteja separada da linhagem dos lobos-cinzentos há cerca de 4,5 milhões de anos. Ao longo de todo esse tempo, o nosso maior e mais emblemático canídeo acumulou várias características morfológicas e comportamentais únicas.
Diferentemente dos lobos do Hemisfério Norte, os lobos-guarás se alimentam de uma variedade de itens, como pequenos e médios vertebrados que eles caçam sozinhos, frutos nativos e silvestres, especialmente um que ficou conhecido como lobeira ou fruta-do-lobo, por causa da sua preferência, e, em menor quantidade, insetos. Apesar de compartilharem a mesma área de vida, o casal de lobos-guarás só é visto unido na época da reprodução, que ocorre apenas uma vez ao ano. No restante do tempo, fica cada um para o seu lado.
Devido ao hábito solitário, seria esperado que a comunicação entre os lobos-guarás ocorresse mais de forma indireta, através das vocalizações (aulidos) e das marcações com urina e fezes. Para minha surpresa, o Mogli, que vive sozinho no zoológico, apresentou um comportamento típico dos canídeos sociais, ao se esfregar várias vezes sobre a sardinha que eu ofereci. Buscando entender a função desse comportamento, encontrei algumas hipóteses que compartilho com vocês.
Primeiro, algumas observações:
- Os cães domésticos começam a apresentar o hábito de se esfregar sobre superfícies com cheiro forte aos três meses de idade.
- Cães que ficaram com um forte odor, após rolarem sobre carniça ou fezes, atraem muito mais a atenção de outros cães.
- Para desespero dos proprietários, esse comportamento de se esfregar sobre alguma coisa malcheirosa é mais frequente logo após os banhos.
Agora, algumas hipóteses:
A teoria mais difundida para explicar esse comportamento é que o odor adquirido funcione como uma espécie de camuflagem olfativa, escondendo seu próprio cheiro de uma presa em potencial. Embora essa hipótese pareça plausível, ela foi rejeitada por alguns pesquisadores por causa do hábito dos canídeos de obter seu alimento através da perseguição de suas presas por longas distâncias. Canídeos não são predadores de emboscada que atacam de surpresa e, portanto, não dependem de camuflagem para caçar. Além disso, canídeos menores foram vistos rolando sobre fezes de outras espécies de carnívoros maiores, como o lobo-cinzento e a onça-parda, o que não ajudaria a não espantar uma possível presa.
Uma segunda teoria sugere que o hábito de se esfregar em superfícies malcheirosas fornece um tipo de identidade olfativa compartilhada pelos membros do grupo e qualquer cheiro forte, geralmente carniça ou fezes, serve de estímulo para que todos se esfreguem em um determinado local. Lobos cativos foram observados se esfregando sobre o mesmo local até que todos ficassem como o mesmo cheiro.
Todos sabemos da importância do olfato para os canídeos e até nos aproveitamos da sua capacidade milhares de vezes maior que a nossa em detectar e reconhecer odores na busca por pessoas desaparecidas ou na investigação do tráfico de drogas ou de partes de animais de espécies ameaçadas de extinção. Recentemente eu assisti a um documentário surpreendente sobre um labrador com visão comprometida que já ajudou a prender mais de 60 caçadores de elefantes usando seu olfato para encontrar marfim.
Outra ideia muito interessante explica esse comportamento como uma forma de levar informação sobre onde estiveram, e o que encontraram, enquanto permaneceram separados dos outros membros do grupo. Pode ser que ao se esfregar sobre uma carcaça, um lobo ou um cão encontre uma maneira dos seus parceiros ficarem sabendo o que ele encontrou pelo caminho ou do que ele se alimentou. Se realmente for isso, quem mais se identifica com os canídeos?
Muitas pessoas gostam de compartilhar suas refeições mais especiais nas redes sociais. Então, da próxima vez que você postar uma foto do seu prato no Facebook ou no Instagram, pode ser que o seu objetivo seja semelhante ao do seu cachorro ao rolar na carniça!
Kátia Gomes Facure Giaretta é professora do curso de graduação em Ciências Biológicas do Instituto de Ciências Exatas e Naturais do Pontal da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É docente credenciada no Programa de Pós-graduação em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais da UFU. Instagram: @ecologia_em_fotos
A seção "Leia Cientistas" reúne textos de divulgação científica escritos por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São produzidos por professores, técnicos e/ou estudantes de diferentes áreas do conhecimento. A publicação é feita pela Divisão de Divulgação Científica da Diretoria de Comunicação Social (Dirco/UFU), mas os textos são de responsabilidade do(s) autor(es) e não representam, necessariamente, a opinião da UFU e/ou da Dirco. Quer enviar seu texto? Acesse: www.comunica.ufu.br/divulgacao. Se você já enviou o seu texto, aguarde que ele deve ser publicado nos próximos dias.
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