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La Noire de...

Um retrato atemporal da desilusão pós-colonial

Publicado em 05/12/2025 às 11:43 - Atualizado em 05/12/2025 às 12:31

Diouana e seu namorado lendo uma revista em Dakkar [still]. (Imagem: La Noire de... Produção de Filmi Domirev e Les Actualités Françaises)

“La Noire de...” (Black Girl, 1966), obra-prima do cineasta senegalês Ousmane Sembène, é um marco fundador do cinema africano. Com uma duração de 65 minutos, este filme de impacto contundente foi o primeiro longa-metragem dirigido por um realizador da África Subsaariana. Sua importância foi reconhecida internacionalmente com o Prémio de Melhor Realizador no Festival de Cartago e o Prémio Jean Vigo em 1966, entre outras distinções.

O filme narra a história de Diouana, uma jovem senegalesa que, atraída pela promessa de uma vida melhor, acompanha uma família francesa para o sul da França. No entanto, a sua experiência transforma-se rapidamente num pesadelo de confinamento e desumanização. Através desta narrativa íntima e dolorosa, Sembène constrói uma alegoria poderosa sobre as relações pós-coloniais entre a França e o Senegal, explorando temas como o sonho migrante, o racismo, a exploração laboral e a luta pela própria identidade e agência.

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Cartaz de divulgação para o relançamento do filme nos Estados Unidos, 2016 (imagem: La Noire de... Produção de Filmi Domirev e Les Actualités Françaises)

Para entender o impacto do filme La Noire de… /Black Girl (1966), é essencial conhecer a trajetória de seu criador, Ousmane Sembène. Mais do que um cineasta, ele é considerado um dos principais pensadores da África pós-colonial.

A partir de suas produções ele instituiu modelos basilares para a produção cinematográfica do continente, e trouxe às telas princípios tradicionais e denúncias a colonização em Áfricas.

Nascido em 1923 no Senegal, Sembène teve uma formação fora dos padrões acadêmicos. Seu aprendizado se deu principalmente por meio de seu trabalho como estivador nos portos e operário em fábricas na França.

A principal busca de Sembène era reverter a lógica colonial no cinema, onde o africano era retratado como um objeto passivo. Seus filmes, em contrapartida, colocam o africano no centro da narrativa, como um personagem com história própria, complexidade emocional e autonomia moral.

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Da direita para a esquerda: Glauber Rocha, cineasta brasileiro; e Sembène Ousmane, cineasta senegalês (imagem: PSV-Films)

Em Black Girl, essa visão se concretiza. A câmera adota o ponto de vista da jovem Diouana, permitindo que o público veja o mundo através de seus olhos, sinta seu confinamento e tenha acesso aos seus pensamentos mais íntimos, seus sonhos de ver o mundo, usar vestidos exuberantes, belos xales e andar de automóvel.

 Seu perfil é marcado por uma combinação singular de sutileza e coragem. Sua trajetória espelha aspirações comuns a muitos jovens negros: a mobilidade social simbolizada pelo consumo, a busca por reconhecimento e, acima de tudo, a luta pelo simples direito de ser tratada com humanidade. 

Mais de cinquenta anos após sua realização, o longa-metragem de Sembène, permanece como um soco no estômago. Sua história simples e brutal sobre os sonhos frustrados de uma jovem senegalesa na França é um retrato doloroso e atemporal das heranças do colonialismo. 

O termo "pós-colonial" no contexto de Black Girl não significa que os efeitos do colonialismo terminaram, mas sim que a história se desenrola após o evento formal da independência, em um contexto ainda profundamente marcado e estruturado por essa herança.

O colonialismo francês no Senegal possui características únicas que ajudam a explicar a relação complexa retratada no filme.

O Senegal foi a pedra angular do império colonial francês na África. A cidade de Saint-Louis (fundada em 1659) foi a primeira colônia francesa permanente na região. Paris implementou ali uma política única de "assimilação". O objetivo era, teoricamente, transformar os senegaleses em "cidadãos franceses" de cultura e direitos.

Na prática, isso criou uma elite privilegiada, os "Quatro Comunas" (Saint-Louis, Gorée, Dakar e Rufisque), cujos habitantes tinham certos direitos, incluindo eleger um deputado para o parlamento francês. Esta elite assimilada é um pano de fundo importante para a crítica social de Sembène.

Tal como outras potências coloniais, a França justificava sua presença com a "mission civilisatrice" (missão civilizadora). Tratava-se de uma ideologia que pregava a superioridade da cultura, língua e valores franceses, devendo estes ser impostos aos povos "atrasados".

Esta mentalidade é central para entender a dinâmica em Black Girl. Os patrões franceses não se veem como exploradores, mas como portadores de civilização para Diouana, mesmo que essa "civilização" se resuma a servi-los num apartamento claustrofóbico.

O colonialismo francês no Senegal não foi apenas uma exploração econômica, mas um projeto profundo de dominação cultural. A promessa de "assimilação" criou uma relação ambígua de atração e rejeição. La Noire de… /Black Girl (1966) capta perfeitamente o resultado dessa herança na era pós-independência: a desilusão de descobrir que a igualdade e o respeito prometidos pela assimilação eram uma ilusão, e que as estruturas mentais de superioridade e inferioridade coloniais permaneciam intactas, mesmo num contexto formalmente "pós-colonial".

É mais interessante pensar no "pós" não como "depois de terminado", mas como "em resposta a" ou "em negociação com" o colonialismo. A relação de poder, a mentalidade e a exploração econômica persistem, apenas sob uma nova forma. Especificamente no filme: Independência Formal vs. Dependência Real: O Senegal tornou-se independente em 1960. O filme, de 1966, mostra que, apesar da independência política, a relação com a França continuou a ser de subalternidade econômica e cultural. Diouana migra para a França porque a ex-metrópole ainda é vista como o centro de oportunidades, repetindo um fluxo colonial.

O longa-metragem ilustra a persistência da mentalidade colonial através da lógica pela qual os patrões franceses tratam Diouana exatamente como se o regime colonial ainda estivesse em vigor. Eles se veem como superiores, como "benfeitores" que levam a civilização (agora na forma de um apartamento na Riviera) para uma nativa. A hierarquia racial e social não foi desmontada com a independência.

O Neocolonialismo como conceito-chave é categórico ao descrever o controle que as ex-metrópoles continuam a exercer sobre suas ex-colônias através de mecanismos econômicos, culturais e de dívida. A relação de Diouana com seus patrões é uma alegoria perfeita do neocolonialismo: ela é formalmente "livre" para ir à França, mas uma vez lá, encontra-se presa em uma relação de exploração e dominação.

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Diouana coberta de jóias, chegando a França. [still] (imagem: La Noire de... Produção de Filmi Domirev e Les Actualités Françaises)

Sembène não estava fazendo um filme histórico. Ele estava fazendo uma intervenção urgente no presente. Ele estava dizendo ao seu público, tanto africano quanto europeu não sobre algo do passado, mas o que estava acontecendo no agora. A única flutuação temporal no filme são os flashbacks para Dakar. Essas memórias representam o passado recente e idealizado de Diouana, e o momento de esperança antes da partida. 

 

Carlos Roberto Pereira de Sousa Filho é discente do curso de licenciatura em História na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). carlos.hagen@ufu.br

 

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Palavras-chave: cinema colonialismo cineasta neocolonialismo

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