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Série Mulheres e Meninas na Ciência

Uma professora em eterna aprendizagem

A professora e diretora de pós-graduação fala sobre suas vivências e sua relação com a ciência

Publicado em 17/03/2023 às 16:16 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:38

Eloisa Ferro tem cerca de 97 trabalhos publicados, diversos orientandos e ainda é apaixonada por contemplar a natureza. (Foto: Marco Cavalcanti)

“Eu aprendi a distinguir defeito de característica. E eu tenho uma característica: eu sou muito focada, eu não fico rodeando para falar”. Em meio a risadas e histórias, a conversa com Eloísa Amália Vieira Ferro começou como um bate-papo desmentindo a fama de brava que tem nos corredores da universidade.

Mais conhecida como Eloisa Ferro, a professora de histologia, biologia celular e embriologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) também é diretora de Pós-Graduação da universidade e docente da escola de doutorado de Ciências da Vida da Università degli Studi di Siena, na Itália. Décima filha de uma família com doze irmãos, foi a partir de palavras de incentivo do pai que Ferro decidiu se empenhar nos estudos.

Ferro em visita a Itália. (Foto: Arquivo pessoal)

A vontade de trabalhar com uma “coisa mais aplicada” e fazer a interface entre parasitologia e imunologia levou Ferro a pesquisar sobre toxoplasmose. “Eu comecei na universidade em 1992, só tinha mestrado. Fui para o doutorado em 1996 e comecei a trabalhar com o professor José Roberto Mineo [do Instituto de Ciências Biomédicas], que foi muito importante na minha carreira, é um parceiro até hoje. Aí fui trabalhar com toxoplasma. Naquela ocasião, havia poucos trabalhos sobre toxoplasmose e célula trofoblástica, que faz parte da placenta. Aquilo era muito diferente, muito inédito”, conta. 

“Quantos nascimentos têm com toxoplasmose? Um a cada 10 mil, mais ou menos, varia muito. Mas, na família em que acontece, é 100%. Então, em termos de saúde pública, a estatística é importante. Mas, para a saúde da pessoa, um caso é importante”, completa.

Fechando a série “Mulheres e Meninas na Ciência”, a pesquisadora fala sobre o tema e como ele está presente na sua história. Para Ferro, as mulheres são mais propensas a criar redes colaborativas e impulsionar outras a compartilhar o que têm para oferecer. E são tantas vivências e histórias que foi difícil fazer uma reportagem pequena.

 

Leia a entrevista que a Eloisa Ferro concedeu para a série “Mulheres e Meninas na Ciência”:

Quem é você na plataforma Lattes?

Sou uma professora da Universidade Federal de Uberlândia, sou diretora de pós-graduação, fui membro do comitê assessor da Fapemig [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais], que julgava os projetos da Câmara de Ciências Biológicas e Biotecnologia, chamada CBB. Tenho 97 trabalhos publicados, 12 orientandos de doutorado, mais um tanto de mestrado e um monte de alunos de iniciação científica.

Sou professora também da graduação do curso de Ciências Biológicas no primeiro período, que eu adoro. Sou credenciada em dois programas de pós-graduação: Imunologia e Parasitologia Aplicadas, que recebeu conceito 7 na última avaliação, e o programa de Biologia Celular, que recebeu o conceito 4 e também subiu de conceito. Sou uma brasileira, nascida em Uberlândia e entusiasmada pela vida.

 

E quem é você além do Lattes?

Sou uma pessoa alegre, que joga beach tennis — estou aprendendo a jogar beach tennis —, adoro a natureza. Tenho uma natureza contemplativa, adoro ver as estrelas, adoro ver a Lua, sou apaixonada pela Lua. Aprendi a mergulhar, comecei a fazer um curso de mergulho e mergulhei em Fernando de Noronha. Foi incrível, que mundo maravilhoso. E eu senti, no fundo do mar, como se eu estivesse no útero da minha mãe, porque voltei para o ambiente de onde eu saí. É muito, muito, muito… Não dá para descrever a sensação. Ver uma tartaruga, um tubarão passando perto e não sentir medo, me senti pertencente ao planeta. Muito lindo.

Ferro pratica beach tennis regularmente. (Foto: Arquivo pessoal)

Como era a sua relação com a ciência quando você era criança?

Eu sempre estudei em escola pública. Eu tive professores inspiradores e tive o privilégio de ter minha irmã mais velha como professora de ciências e biologia. Em cidade pequena, não tinha laboratório nem nada. E ela levava tubo de ensaio para a sala de aula para fazer as coisas, para determinar pH, coisas simples, e fazia a gente fazer um relatório daquilo. Aquilo, para mim, foi uma coisa encantadora, ver a ciência acontecendo na minha frente. E eu decidi que queria ser cientista. Eu nem sabia o que era isso, mas primeiro eu queria ser astronauta e depois eu queria ser cientista [risos].

Ferro em mergulho em Fernando de Noronha. (Foto: Arquivo pessoal)

Você tem alguma boa história que já vivenciou como cientista e que, quando conta, todo mundo acha interessante? Poderia nos contar também?

Tem uma história que não está no meu Lattes e eu gosto muito dela. Eu estava na minha sala, tinha acabado de publicar um trabalho com uma orientanda minha, a Letícia, que é professora hoje, e alguém me ligou e falou: “doutora”. Achei estranho alguém me chamar de doutora. Era o secretário de saúde do Paraná. Tinha um surto de toxoplasmose e ele havia acabado de ler o nosso trabalho usando azitromicina. Ele nem sabia que eu era brasileira nem nada. Ele não tinha os medicamentos que são preconizados pelo Ministério da Saúde e [gostaria de saber] se ele podia usar azitromicina para tratar o surto, porque os nossos resultados mostravam que era incrível o resultado comparado com o tratamento convencional.

Eu disse: “Olha, primeira coisa: eu não sou médica. Eu não fiz nenhum estudo com população humana para te recomendar, mas é um medicamento que a grávida pode tomar quando tem infecção porque não faz mal para a criança”. E ele só falou: “vou pensar”. Depois de um tempo, ele me liga contando que ele usou e nenhuma criança nasceu com toxoplasmose congênita.

Aí eu lembrei de uma frase do filme “A Lista de Schindler”, em que um dos judeus fala o seguinte: “quem salva uma vida, salva a humanidade inteira”. Eu me senti muito recompensada. Não está no meu Lattes mas é a história mais bonita da minha vida.

 

Quais as barreiras que as mulheres enfrentam no mundo da ciência?

Hoje eu sou pesquisadora 1D [a Produtividade em Pesquisa é dividida em 3 categorias: Sênior, PQ-1 e PQ-2. Na categoria PQ-1, o pesquisador é enquadrado em um dos quatro níveis, sendo eles: A, B, C ou D] do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Mas se você pegar a lista dos contemplados com a bolsa de produtividade, são muito mais homens do que mulheres. A composição dos comitês julgadores do CNPq e da Capes é predominantemente masculina. E onde estão essas mulheres?

Se você ver o número de titulados, de doutores e mestres de maneira geral, sempre é mais mulher. Onde essas mulheres estão? Seguramente, em sub-emprego, já que o espaço não existe. Mas isso não é privilégio da ciência. Em todos os espaços de poder, você vê que tem um predomínio masculino, isso não é novidade nenhuma. Na ciência, há mulheres que foram, assim, ignoradas.

 

Hoje, você é diretora de Pós-Graduação, que também é um espaço de poder. Como você se vê nesse papel?

Quando eu fui convidada pelo professor Valder [Steffen Junior] e pelo professor Carlos [Henrique Carvalho], fiquei muito assustada, com muito medo. Eu já tinha sido coordenadora de programa de pós-graduação e tinha tantos problemas pequenos. A universidade não ocorre no gabinete do diretor, do pró-reitor ou do reitor, a universidade acontece nos espaços como sala de aula, nos laboratórios, nos hospitais, é lá dentro que acontece. Eu estava em uma situação em que, se eu conseguisse tirar algumas areias dessa engrenagem, para facilitar o funcionamento da pós, ia ser um privilégio muito grande para mim.

Então, eu tenho tentado fazer isso, mantendo uma proximidade de escuta com os coordenadores, as secretárias dos programas, os representantes dos técnicos e dos alunos, porque eu sou orientadora também. Nesse aspecto, no sentido de viabilizar e melhorar o funcionamento de onde a universidade acontece, que é lá na base. Eu vejo a pós-graduação com uma importância muito grande. Se você vai fazer um curso em que há uma pós-graduação robusta e com destaque nacional, certamente o curso de graduação que está relacionado à unidade acadêmica vai atrair melhores e mais alunos, porque ele vê uma perspectiva futura.

Agora, o fato de ser mulher e diretora, acho que foi um reconhecimento do professor Valder, no sentido de valorizar a mulher, ainda que sejamos poucas diretoras. Eu fiquei feliz por ser chamada. Não tem uma bandeira feminista no sentido de fazer política voltada só para mulheres, mas no sentido de um coletivo. Porque eu acho que a mudança que a gente espera da sociedade se faz diariamente, ou seja, tratando de maneira igual os que são iguais.

 

Do que precisamos para ter mais meninas e mulheres na ciência?

A primeira coisa é que eu acho que uma geração tem que redimir a outra geração. As mães de hoje devem acreditar nas filhas, elas podem ser o que elas quiserem. A primeira coisa é dar para a criança a importância da educação como mecanismo de transformação de vida, dar oportunidade para educar.

Que a escola veja as meninas, dê experiências marcantes de laboratório, de campo. Para ver a beleza que é a vida. A gente é pó de estrela, temos que entender que somos parte desse mundo. Se você se torna um apaixonado pela vida, você já é um cientista natural, efetivamente, de direito, ou de fato. Você vai exercer uma profissão naquilo ou não, mas pelo menos vai saber que faz parte dessa vida. Porque o cientista nada mais é do que um admirador da vida no sentido pleno. “Para que tudo isso? Para melhorar a qualidade da vida sem esquecer que estamos em um planeta único, a Terra, um sistema fechado, e o que a gente fizer aqui vai atingir a todos.

Então, as mães acreditarem, a família acreditar nessa menina, que a menina tenha oportunidade de ser o que ela quer, que a escola, mesmo em escola pública, que deem experiências motivadoras para os alunos, que tenha investimento público. Que essas meninas acreditem no potencial transformador, que elas podem fazer o que quiserem, inclusive não ser cientistas. Mas se decidir ser, que tenha o caminho aberto. O fundamental é alguém acreditar na gente, e a primeira pessoa que precisa acreditar na gente, é a gente mesmo.

 

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Palavras-chave: Série Mulheres e Meninas na Ciência Eloisa Ferro

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