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Série Mulheres e Meninas na Ciência

A música nas Ciências Sociais: pois 'a arte existe porque a vida não basta'

Maria Leonor conta a sua história como artista na área de pesquisa e relata dificuldades enfrentadas por mulheres no meio acadêmico

Publicado em 08/03/2024 às 14:17 - Atualizado em 15/03/2024 às 17:49

Maria Leonor canta desde a infância e, hoje, estuda Ciências Sociais na UFU. (Foto: arquivo pessoal)

 

O meio acadêmico pode ser do anseio de muitos jovens universitários ao ingressar em uma graduação, mas, para aqueles com bagagens e vivências que se relacionam com o curso a ser feito, é mais prazeroso embarcar nessa e desenvolver projetos harmônicos com a sua história. Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisadora de Iniciação Científica, Maria Leonor é uma mulher travesti mergulhada em pesquisas relacionadas ao seu interesse pessoal e a questões sociais importantes para si.

Desde a infância ela canta. A sua conexão com a arte a alimenta de forma quase religiosa, com um profundo contato com a música. Aos 30 anos, Leonor está dedicando seu tempo para finalizar a sua graduação em Ciências Sociais, mas o seu caminho até chegar aqui foi longo e com muita história a ser contada. A cantora relata que tudo começou em uma região perto de Maceió (AL), chamada Boca da Mata, onde cresceu com uma família cristã, a qual apoiou a sua trajetória cantando com os grupos da igreja. 

A história de Leonor é marcada pelo seu crescimento em um lugar onde a educação não era bem financiada e nem desenvolvida. Quando chegou a Ituiutaba (MG),aos 18 anos, era quase tudo novidade, inclusive questões relacionadas a vestibular e a proximidade com a ideia de graduação. Além disso, a pequena criança que ela era também sofreu nas mãos de outras crianças, que a fizeram passar por diversos preconceitos, apenas pelo seu jeito único e singular. 

As suas habilidades musicais foram se aperfeiçoando, criando assim, a sua maior paixão na vida, cantar e se apresentar. Quando se mudou para a Ituiutaba com a família, terminou o ensino médio e, então, iniciou sua graduação no curso de Serviço Social no Campus Pontal. No decorrer da sua trajetória, participou do processo de transferência para o curso de Ciências Sociais no Campus Santa Mônica, em Uberlândia (MG), e, quando aprovada, mudou de cidade e iniciou uma nova graduação do zero, no final de novembro de 2021.

O carinho sentido pela UFU é forte, pois, na universidade, Leonor começou a ser a pessoa que é, e sempre foi: uma mulher. Ela teve ferramentas intelectuais na faculdade para se entender como mulher travesti e tomar decisões relacionadas, fazendo esse caminho de retomada de quem ela já sabia quem era, com quem ela gostaria de ser.

Em Uberlândia, Leonor teve a oportunidade de começar algo novo, uma graduação nova em uma cidade nova. O curso de Ciências Sociais está diretamente ligado com quem ela é, e com os seus anseios para desenvolver pesquisas com temas que a tocam. Atualmente, já está dando seus primeiros passos para conseguir realizar o seu desejo no momento, ser professora, trabalhando como profissional de apoio na Escola de Educação Básica (Eseba/UFU), tendo contato direto com a educação, e convivendo com crianças e pré-adolescentes.

A sua carreira acadêmica segue em comunhão com a sua carreira artística. O projeto de pesquisa com sua participação está em desenvolvimento e com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). O foco é em análises ensaísticas de Manuel Zapatta (médico, antropólogo e escritor colombiano) e Abdias do Nascimento (ator, escritor e professor brasileiro), que trabalharam com ensaios político-culturais. Cíntia Camargo Vianna, orientadora do projeto, busca comparar os autores, analisar a forma como ambos pensavam, e os seus conceitos de negritudes na América Latina e no mundo. Os estudos e o vasculhamento cultural feitos por Leonor, estão em contato direto com alguns dos seus anseios na busca por pesquisa de raça. 

As suas escritas continuam sendo feitas através de todas as suas vivências. Apesar de nenhum projeto artístico em vista, Leonor segue cantando e se apresentando nos mais diversos lugares. Com o primeiro livro publicado, “Perseguindo Borboletas”, sua criatividade segue fluindo como um rio. E mesmo sem previsão, é esperado mais de onde veio esse, pois como diria Ferreira Gullar, “a arte existe porque a vida não basta”.   

Com pesquisas sendo desenvolvidas, projetos artísticos sendo lançados e muitas apresentações musicais, Leonor conta mais um pouquinho para o Comunica UFU sobre a sua relação com a ciência. 


Quem é você na plataforma Lattes?

Leonor: Eu estou meio desatualizada na plataforma Lattes, mas se entrar agora, eu já atualizei o curso de Serviço Social para Ciências Sociais. Já tinha registrado que eu tinha enorme interesse por pesquisas de gênero, raça, classe e sexualidade, com ênfase em gênero e sexualidade, e com recorte para as travestilidades. Costumo dizer que minha pesquisa esbarra muitas vezes na etnografia como método antropológico, pesquisando um grupo social que inclusive eu mesma faço parte. Além da presença de certificados em apresentações de eventos culturais e palestras. Hoje em dia, não ando atualizando, mas registrei que pesquiso os ensaios do Manuel Zapata. 

 

Quem é você fora do Lattes? 

Leonor: Eu uso muito uma frase da Clarice Lispector, minha escritora favorita, pois sou apaixonada pelos trabalhos dela, são fenomenais. E existe essa frase que eu acho magnífica, que é “eu sou tímida e ousada”, que conversa comigo, pois sou tímida dependendo do espaço em que eu estou, mas sou ousada para fazer as coisas, sou reservada e expansiva ao mesmo tempo, entende? Se eu estou no palco, eu me sinto grande e vivo aquela energia que o palco me transmite, com um sorriso grande e me sinto grande. Mas fora do palco, no dia a dia, me sinto quase a ‘mais pequena’ de todas. Quando eu estou na Iniciação Científica, tenho meus medos, receios e inseguranças, mas logo compreendo que ninguém iniciou sabendo, mas que foi desenvolvendo o seu aprendizado. 


Como é para você ser uma mulher na ciência?

Leonor: Eu gosto. É um processo provocativo que me faz muito bem, e eu gosto de me provocar. Gosto de entender que eu estou nesse lugar formativo. Como disse antes, me sinto pequena durante o desenvolvimento da Iniciação Científica, mas também me sinto muito feliz, contente e realizada quando estou pesquisando e percebi coisas e aprendo coisas em que me sinto atravessada por aquela leitura. Então, a ciência, essa pesquisa, vai me fomentando essa vontade ainda mais de continuar. Entendo como um processo. As minhas amigas sempre dizem como se eu já fosse uma socióloga, mas sem o diploma ainda. Eu entendo que ainda não sou professora e não tenho qualificação para dar uma aula a nível graduação, mas já me vejo enquanto cientista. Uma cientista em formação. 

 

Existe alguma dificuldade que você enfrenta por ser uma mulher travesti na área de pesquisa em ciências sociais? 

Leonor: A travestilidade é uma questão que nasce na periferia, de uma forma pejorativa; enquanto transexualidade nasce nas clínicas, logo, há uma higienização. Esse termo foi inicialmente atribuído a mulheres que geralmente passam por acompanhamentos clínicos diversos para se encontrarem como mulheres transexuais, era como se fosse dito “você é uma mulher trans pois está em desacordo com o seu corpo biológico, mas se você se hormonizar, se vestir de tal forma, você vai se tornar uma mulher trans”, ganhando conhecimento técnico, enquanto a travestilidade era vista de outra forma, ela está na criminalidade e na prostituição. Então, hoje em dia, há uma ressignificação, como se abraçássemos o termo e, agora, nós travestis ocupamos espaços diversos, estamos nas universidades, nas pesquisas, nos laboratórios, e podemos estar em todos os lugares, mesmo que, infelizmente, com muita dificuldade. Dentro da academia eu me sinto deslocada em certos momentos, é quase como se tentassem me calar. Na maior parte do tempo, os professores são homens, brancos e cisgêneros, com o reforço de traços homofóbicos, transfóbicos e misóginos, e estamos estudando autores da mesma forma. Então, estudamos teorias de pessoas que, no final do dia, gostariam de dizimar o meu povo, queriam que não existíssemos. É difícil, mas sempre tento falar disso com alguns amigos. Faço parte de uma coletiva de mulheres travestis e transexuais que já passaram pela academia e conversamos sobre a forma em que nos sentimos e essas dificuldades enfrentadas. 

 

 

Política de uso: A reprodução de textos, fotografias e outros conteúdos publicados pela Diretoria de Comunicação Social da Universidade Federal de Uberlândia (Dirco/UFU) é livre; porém, solicitamos que seja(m) citado(s) o(s) autor(es) e o Portal Comunica UFU.

 

Palavras-chave: Série Mulheres e Meninas na Ciência Mulheres e Meninas na Ciência Dia internacional da Mulher

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