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Leia Cientistas

Isolamento social e a metamorfose kafkiana

Kafka ilustra o que vivemos, só que um século antes

Publicado em 25/06/2020 às 15:42 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52

‘Nada está normal, e por conta disso uma das novelas pitorescas de Kafka parece ganhar mais sentido’ (foto: Marco Cavalcanti)

 

Boa parte de nós nos vemos em uma realidade imposta pelo bom senso para a manutenção da saúde, o isolamento social. Termo esse que resvala na filosofia à procura de meios para se definir, e não é tão complicado fazer ilações utilizando os grandes nomes para trazer um pouco de luz sobre quem já passou por essa situação ou como podemos entender o que é o isolamento social. Acontece que apenas explicar ou entender não basta, pois não retira os problemas que essa nova realidade traz, e que por mais que seja momentânea, as angústias não esperam. Sabemos também que é ainda mais angustiante para as pessoas que não podem cumprir o isolamento, que se arriscam e arriscam as pessoas que amam por força da necessidade. Nada está normal, e por conta disso uma das novelas pitorescas de Kafka parece ganhar mais sentido.

 

Gregor, o protagonista, não pode abrir a porta do quarto, até as pessoas que moram com ele só o olham de longe, não se encostam, ele não tem nada para fazer além de ver o que acontece na janela. Nessa narrativa intitulada A metamorfose o personagem acorda no corpo de um grotesco inseto, mas esta é apenas uma das transformações que Gregor sofre, a mais importante e que nos é comum é a solidão. A falta de fome, a tentativa de fuga desesperada e até a morte, não são diretamente ligadas à primeira metamorfose, mas sim retoma a sujeira que os familiares deixam no quarto, a venda dos móveis, inclusive do quadro preferido, os maus-tratos e principalmente a falta de atenção.

 

Olhando dessa perspectiva, a reflexão que podemos retirar deste clássico no que tange nossa realidade devido ao novo coronavírus vai rumo ao combate à solidão. Dar atenção a si mesmo e às pessoas que damos importância para que não nos transformemos em baratas kafkianas. A sensação de improdutividade, a rotina dentro de um único ambiente e o afastamento, pelo menos físico, de algumas pessoas de peso significativo na nossa vida, provavelmente nos desmotiva a cada dia. Gregor por alguns momentos se imaginou descendo as escadas, perseguindo a oportunidade de salvar seu emprego que era o ganha pão da família, mas não teria como, deveria esperar, mesmo com o hospital do outro lado da rua, ainda não existia remédio para aquilo. Kafka ilustra o que vivemos, só que um século antes. Gregor não consegue voltar à antiga realidade, como não conseguimos agora, só que o que fazemos depois que estamos nessa nova circunstância é o que define nossas novas metamorfoses.

 

*Pedro Cintra é graduando em licenciatura pelo Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (IFILO/UFU) e desenvolve pesquisas que procuram aproximações possíveis da literatura em relação à filosofia e às demais produções científicas dentro da universidade.

A seção "Leia Cientistas" reúne textos de divulgação científica escritos por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São produzidos por professores, técnicos e/ou estudantes de diferentes áreas do conhecimento. A publicação é feita pela Divisão de Divulgação Científica da Diretoria de Comunicação Social (Dirco/UFU), mas os textos são de responsabilidade do(s) autor(es) e não representam, necessariamente, a opinião da UFU e/ou da Dirco. Quer enviar seu texto? Acesse: www.comunica.ufu.br/divulgacao. Se você já enviou o seu texto, aguarde que ele deve ser publicado nos próximos dias.

 

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