Publicado em 04/02/2022 às 08:31 - Atualizado em 22/08/2023 às 20:21
“Nosso estudo demonstrou que a pandemia consumiu toda a capacidade de resposta do SUS e as DTNs foram esquecidas ou deixadas de lado, o que ampliou a mortalidade por essas doenças”, explica Stefan Oliveira. (Foto: Unsplash)
Em 2020, os brasileiros foram forçados a deixarem o jeito caloroso de lado em virtude do distanciamento social, tomado como medida preventiva contra o coronavírus. A situação foi enfrentada em meio às desigualdades características do país, de maneira que, enquanto alguns tinham maior acesso a condições sanitárias de qualidade, outros passaram a ter que lidar, por ainda mais tempo, com as precariedades em que vivem.
Além da preocupação com a covid-19, esses cidadãos são mais expostos a um conjunto de doenças e agravos à saúde, que ocorrem nas regiões tropicais e subtropicais e que acometem populações que vivem em situações de vulnerabilidade, as chamadas doenças tropicais negligenciadas (DTN).
Diante de tal situação e observando as taxas de desemprego cada vez maiores - ampliadas pela pandemia e que ressaltam os níveis de miséria na sociedade brasileira - os pesquisadores Nikolas Dias e Stefan de Oliveira, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (Famed/UFU) em parceria com Álvaro Faccini-Martinez, da Universidade de Córdoba, decidiram realizar um estudo comparativo sobre as DTN.
A principal preocupação de Dias, Oliveira e Faccini-Martinez era saber como a ampliação das dificuldades de acesso a serviços de saúde, acarretada pela pandemia da covid-19, pôde impactar no perfil epidemiológico das DTNs, reconhecendo assim os efeitos secundários que a pandemia causa na ocorrência de outras doenças endêmicas do Brasil. Para isso, os pesquisadores compararam os dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS) durante os primeiros oito meses de 2020 com os valores do mesmo período entre 2017 e 2019.
O estudo constatou que o número de internações por parte das DTNs diminuiu no período de 2020, seja pelo medo de procurar os serviços de saúde (motivado pela pandemia), seja pela confusão diagnóstica, uma vez que muitas dessas doenças têm sintomas iniciais semelhantes à covid-19. A situação fez com que esses pacientes não fossem internados devidamente, de forma que a taxa de óbito pelas doenças tropicais negligenciadas crescesse exponencialmente.
Os dados levantados pela pesquisa mostram que a taxa de mortalidade para a malária subiu 82,55%, enquanto as internações pela doença caíram 29,3%. Leishmaniose visceral e leptospirose também registraram aumento de mortalidade de 32,64% e 38,98%, e a taxa de internação para essas doenças apresentou quedas de 32,87% e 43,59%, respectivamente.
Em contrapartida, os dados comparativos da dengue mostraram que ela teve um aumento de 29,51% nas internações e 14,26% na taxa de mortalidade. Esse cenário é acarretado pela diminuição nas ações de prevenção e controle da dengue, que, por ser uma doença epidêmica, teve um aumento nas duas variáveis.
Para Oliveira, em um momento pandêmico como o que estamos vivendo, o maior desafio diz respeito a atender uma emergência sanitária sem esquecer das doenças endêmicas menos incidentes.
“Nosso estudo demonstrou que a pandemia consumiu toda a capacidade de resposta do SUS e as DTNs foram esquecidas ou deixadas de lado, o que consequentemente ampliou a mortalidade por essas doenças, pois elas não deixaram de existir em nosso território com o surgimento da covid-19”, explica.
O perigo por trás do aumento das DTNs
O cenário das doenças tropicais negligenciadas que se criou durante a pandemia mostra-se envolto por um véu de dúvidas e preocupações. De acordo com a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), houve um aumento do número de casos dessas enfermidades durante o período analisado. Os pesquisadores da UFU concluem que a vigilância epidemiológica destes agravos foi descontinuada por causa da pandemia, o que faz com que estejamos “navegando sem uma bússola”, uma vez que os dados epidemiológicos coletados pelos programas de vigilância são utilizados para definir as políticas públicas de saúde.
“Estamos sob o risco do desconhecido e novas epidemias podem surgir, pois não sabemos qual a atual magnitude dessas DTNs silenciadas pela pandemia”, afirma Oliveira.
Ainda, por acometerem a população economicamente ativa, as doenças tropicais negligenciadas retiram esses indivíduos de suas funções produtivas em sociedade. Além dos problemas individuais de saúde, pode-se considerar que as DTNs oneram o Estado, uma vez que anualmente milhares de pessoas necessitam de internações, medicamentos e de apoio social em afastamentos temporários ou permanentes, em decorrência da doença. Dessa forma, é mais efetivo e menos danoso para o indivíduo e para sociedade investir em prevenção.
“Investimentos em vigilância em saúde e promover pesquisa translacional em DTN, são algumas das medidas para lidar com a situação. Podemos também reconhecer os avanços obtidos no controle da pandemia da covid-19 e utilizar destes modelos e estratégias de prevenção, controle e assistências para as DTNs”, finaliza Oliveira.
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Palavras-chave: DTN Ciência pandemia COVID-19
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