Publicado em 05/04/2022 às 13:53 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:39
Ortiz: 'Como se humaniza um sujeito no Jornalismo Literário? Realizando uma equivalência entre a identidade do sujeito e a sua representação’. (Foto: Marco Cavalcanti)
Quem trabalha com jornalismo conhece bem a expressão “humanizar o sujeito”. Dentro das redações, a frase é utilizada para definir a ação de desenvolver uma visão aprofundada sobre a história e as vivências de determinado sujeito em uma notícia, reportagem ou outro conteúdo jornalístico. No jornalismo, humanizar alguém é, como diria o pesquisador Sérgio Vilas-Boas, “tratar os seres humanos como genuínos protagonistas de histórias reais, compreender suas vivências e elevá-las a uma posição ‘suprema’ em relação às estatísticas”.
À primeira vista, essa pode parecer uma tarefa fácil, mas, no dia-a-dia do fazer jornalístico, não é. O jornalismo, como qualquer profissão, é marcado pelas etapas de produção que o compõem. Assim, o jornalista, ao chegar na redação, precisa propor pautas; investigar histórias; conversar com várias fontes; checar as informações; produzir textos, imagens, áudios e/ou vídeos; e revisar, publicar e divulgar os conteúdos. Tudo isso correndo contra o tempo, porque a notícia corre e, como se diz nas redações, envelhece e morre no dia seguinte.
Essa rotina apertada é um obstáculo para a elaboração de matérias humanizadas. Aliás, não só ela. Há também a busca pelo “furo” - jargão utilizado para definir a informação publicada em um veículo antes de todos os demais - e/ou pela audiência, a hierarquia no ambiente de trabalho da redação, os interesses das empresas de comunicação e muito mais. Esses fatores contribuem para que a humanização do sujeito seja deixada de lado e relembrada apenas em datas comemorativas, como o Dia das Mães ou o Dia do Orgulho LGBTQIA+.
Vitimizado pelas próprias condições de produção, o jornalismo tradicional, apesar de seu grande poder, papel e importância para a sociedade, acaba, em grande parte das vezes, objetificando o sujeito e, com isso, se distanciando do seu compromisso com a cidadania. Mas existem outras formas de fazer jornalismo que escapolem dos dilemas do sistema de produção do jornalismo tradicional. Uma delas é o Jornalismo Literário, um segmento que alia elementos fundamentais do jornalismo e da literatura.
Da primeira área, esse segmento respeita a investigação e o compromisso com os fatos. Da segunda, valoriza os recursos linguísticos para a narração de histórias. O resultado disso são textos mais longos e contextuais, a perscrutação da conjuntura maior dos fatos e o aprofundamento das reflexões sobre diferentes aspectos do contexto político, social, econômico e cultural. Cedendo mais tempo para a elaboração de conteúdos, o pressuposto existencial do Jornalismo Literário é a valorização das vivências das pessoas, o que faz dele um agente importante para a humanização do sujeito.
“E como se humaniza um sujeito no Jornalismo Literário?”, você pode se perguntar. A resposta é complexa, mas podemos sintetizá-la da seguinte maneira: realizando uma equivalência entre a identidade do sujeito e a sua representação pelo Jornalismo Literário.
A identidade é construída pelo próprio sujeito, situado em determinadas posições sociais, econômicas, históricas, geográficas e culturais, e que a constrói por meio dos significados que atribui ao seu cotidiano. Já a representação do sujeito é construída pelo Jornalismo Literário, por meio de recursos como palavras e imagens, que produzem sentidos sobre a vivência dos sujeitos. A representação do sujeito próxima à sua identidade é o que valida a sua humanização.
Mas será que essa proximidade é tão fácil de alcançar? E será que os veículos de comunicação voltados para o Jornalismo Literário conseguem, de fato, humanizar os sujeitos? Ainda mais em reportagens sobre tragédias, nas quais muitas pessoas morrem, será que o jornalista literário consegue, como diria Vilas-Boas, elevar os sujeitos a “uma posição ‘suprema’ em relação às estatísticas”? Foram essas indagações que originaram a pesquisa que apresentaremos agora.
Sobre a pesquisa
A monografia “Os dilemas da identidade do sujeito diante da representação pelo Jornalismo Literário: análise cultural de reportagens sobre tragédias na revista piauí” foi desenvolvida por mim, em conjunto com meu orientador, professor Gerson de Sousa, no curso de Jornalismo da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (Faced/UFU). A pesquisa foi defendida e aprovada em 29 de outubro de 2021, sendo a banca examinadora composta pela professora Ana Spannenberg e pela jornalista literária da Diretoria de Comunicação Social da UFU (Dirco) Diélen Borges.
O objeto de estudo da pesquisa é a revista piauí. A piauí é uma revista brasileira, de periodicidade mensal, que adota o Jornalismo Literário para construir suas matérias. Ela foi concebida pelos jornalistas Mario Sergio Conti, Dorrit Harazim e Marcos Sá Corrêa e fundada pelo banqueiro João Moreira Salles em 2006. Eles idealizaram, como apontado por Salles, “uma publicação capaz de oferecer ao leitor o que se tornava cada vez mais raro: um jornalismo feito de histórias, com zelo narrativo e à vontade nos tempos largos - tanto para a apuração como para a escrita e, depois, para a fruição”.
A piauí publica, além de jornalismo, comentários, crítica, ensaios, ficção, sátira, charges e poesia. (Fonte: revista piauí)
Sendo impossível analisar todas as matérias publicadas pela piauí desde a sua fundação, realizamos um processo seletivo, composto por três etapas, e elegemos três reportagens como amostras de estudo.
São elas: “Foi um terror”, de Brenda Taketa, publicada em agosto de 2020, que traz as tentativas frustradas de conter a expansão do novo coronavírus no município de Breves, na Ilha do Marajó, no Pará; A onda, de Consuelo Dieguez, publicada em julho de 2016, que remete ao rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, Minas Gerais, em 2015; e Os fantasmas do tsunami, de Richard Lloyd Parry, publicada em abril de 2014, que trata do Tsunami de Tohoku, que atingiu a costa leste do Japão em 2011.
Em todos os casos, os sujeitos retratados nas reportagens tiveram as suas vivências atravessadas por catástrofes: no primeiro caso, por uma pandemia; no segundo, pelo rebentamento de uma barragem; e, no terceiro, por um tsunami.
Capas da 91ª, 118ª e 167ª edições da revista piauí, respectivamente - fontes: revista piauí (2014), revista piauí (2016) e revista piauí (2020)
A questão que buscamos responder durante a pesquisa foi: “Como o Jornalismo Literário apresenta um sentido preferencial na representação dos sujeitos em reportagens sobre tragédias na revista piauí?”. Em outras palavras: nas três matérias, quais foram os recursos utilizados pela piauí em sua representação dos sujeitos? Como esses recursos foram construídos? Quais foram os sentidos que eles imprimiram aos sujeitos? E esses sentidos são consonantes com a identidade que o sujeito assume como sua?
Para respondermos à questão, nós nos guiamos pelo Método Dialético, pela teoria dos Estudos Culturais e pela abordagem metodológica da análise cultural.
A quem não conhece, o Método Dialético fornece, como escreve Antônio Carlos Gil, “as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da realidade, uma vez que estabelece que os fatos sociais não podem ser entendidos quando [...] abstraídos de suas influências políticas, econômicas, culturais, etc”. Já os Estudos Culturais, instituídos no final da década de 1950 pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, surgiram, e ainda hoje vêm se desenvolvendo, como um projeto de abordagem da cultura a partir de perspectivas críticas e multidisciplinares. E a análise cultural, de acordo com a pesquisadora Ana Luiza Coiro Moraes, é um método de procedimento em pesquisa que é “político, conjuntural e articula produção e consumo cultural”.
Com eles, utilizamos uma orientação dialética de historicidade em que se tem a dimensão da cultura como ponto primordial.
O objetivo geral da pesquisa foi analisar como o Jornalismo Literário apresenta um sentido preferencial na representação dos sujeitos em reportagens sobre tragédias da revista piauí, enquanto os objetivos específicos foram: compreender os processos de humanização dos sujeitos no Jornalismo Literário, entender o lugar do Jornalismo Literário na vivência cotidiana dos sujeitos e contribuir para pesquisas na área de Estudos Culturais.
Os dilemas de cada reportagem
A monografia é dividida em cinco capítulos. Além da Introdução e das Considerações Finais, reservamos um capítulo para cada amostra de estudo. Em cada capítulo, há uma questão central, que orienta as reflexões.
No capítulo 2, “A busca pelo cotidiano na tragédia de Breves”, nós analisamos a reportagem “Foi um terror”, de Brenda Taketa, que faz uma reconstituição histórica das tentativas de contenção da expansão do coronavírus no município de Breves, no Pará, entre março e julho de 2020. Buscamos responder à pergunta: “Foi um terror” conseguiu, por meio dos recursos do Jornalismo Literário, humanizar os sujeitos retratados na reportagem, representando como eles vivem sua cotidianidade sem recorrer à sensibilização do público pela tragédia?
Já no capítulo 3, “A produção de sentido na tragédia de Bento Rodrigues”, nós investigamos a reportagem A onda, de Consuelo Dieguez, que apresenta uma reconstituição histórica do rompimento da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues, Minas Gerais, em 2015. A pergunta do capítulo é: A onda conseguiu ultrapassar o fato em si ─ o rompimento da barragem ─ e valorizar as vidas dos sujeitos envolvidos na catástrofe?
Por último, no capítulo 4, “A dimensão da cultura na tragédia de Tohoku”, nós estudamos a reportagem Os fantasmas do tsunami, de Richard Lloyd Parry, que narra as decorrências do Tsunami de Tohoku, que atingiu a costa leste do Japão em 2011. A questão central deste capítulo é: a reportagem conseguiu, por meio dos recursos do Jornalismo Literário, representar os sujeitos inseridos na cotidianidade da sua cultura?
Não desdobraremos, aqui, as reflexões desenvolvidas e as conclusões realizadas em cada capítulo. Os interessados podem acessar a monografia completa no Repositório da UFU. Por hora, basta saber que as respostas às perguntas de cada capítulo serviram para responder à questão central da pesquisa: “Como o Jornalismo Literário apresenta um sentido preferencial na representação dos sujeitos em reportagens sobre tragédias da revista piauí?”. E que, em nossas Considerações Finais, nós chegamos à conclusão de que a resposta à questão central não é universal, variando a cada reportagem.
Conclusões da pesquisa
As conclusões da monografia apontam que não é necessariamente a utilização dos recursos do Jornalismo Literário que resulta na equivalência entre a representação do sujeito e a sua identidade, ou seja, na humanização do sujeito. Na verdade, o que aproxima a representação do Jornalismo Literário e a identidade do sujeito é o olhar do jornalista e do veículo de comunicação a partir da vivência do sujeito, e não sobre ela.
Em outras palavras, a humanização do sujeito acontece quando o jornalista e o veículo de comunicação reconstituem os significados que os sujeitos atribuem ao seu ser e estar no mundo. A simples pretensão de produzir uma reportagem literária, por mais bem-intencionada que seja, não é suficiente para representar dignamente o sujeito sobre o qual se escreve. Para isso, são necessários olhos e ouvidos atentos e a constante capacidade de se colocar no lugar do outro.
Mas, afinal, por que é tão importante que se humanize o sujeito no jornalismo? A resposta é crucial. Os veículos de comunicação e os jornalistas têm o poder de produzir a sua representação do sujeito para a sociedade e atribuir significados à realidade. Quando a representação do sujeito se distancia da sua identidade, o jornalismo desonra a sua responsabilidade social e violenta simbolicamente o sujeito. Mas, quando acontece o inverso, o jornalismo os entende como sujeitos sociais, capazes de construir os seus próprios significados enquanto cidadãos.
*Beatriz Ortiz é graduanda em Jornalismo pela Universidade Federal de Uberlândia. Através de mobilidade internacional, cursou Ciências da Comunicação na Universidade da Beira Interior, em Portugal. Atuou como repórter e editora na Agência Conexões, agência de notícias vinculada à UFU. Também atuou como pesquisadora e colaboradora do Observatório de Mídia Luminar. Hoje, é bolsista no Setor de Comunicação do Museu Universitário de Arte (MUnA/UFU). Instagram: @beea_ortiz.
A seção "Leia Cientistas" reúne textos de divulgação científica escritos por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São produzidos por professores, técnicos e/ou estudantes de diferentes áreas do conhecimento. A publicação é feita pela Divisão de Divulgação Científica da Diretoria de Comunicação Social (Dirco/UFU), mas os textos são de responsabilidade do(s) autor(es) e não representam, necessariamente, a opinião da UFU e/ou da Dirco. Quer enviar seu texto? Acesse: www.comunica.ufu.br/divulgacao. Se você já enviou o seu texto, aguarde que ele deve ser publicado nos próximos dias.
Palavras-chave: Leia Cientistas Divulgação Científica revista piauí análise humanização
Política de Cookies e Política de Privacidade
REDES SOCIAIS