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Mulheres pesquisadoras

O que é ser negro no Brasil?

Dissertação de mestrado da UFU traz discussões acerca da obra de Lélia Gonzalez

Publicado em 12/01/2024 às 10:24 - Atualizado em 18/01/2024 às 14:38

Para Mireile Martins (foto), a obra de Lélia Gonzalez é indispensável para se entender as questões raciais brasileiras. (Foto: Marco Cavalcanti)

“A vida do negro é bem o estilo da música dos Racionais: ‘Filho, por você ser preto, você tem que ser 100 vezes melhor’. Mas como ser 100 vezes melhor, se estamos 500 vezes atrasados pelo racismo?”, questiona Mireile Silva Martins, mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e aprovada em primeiro lugar no doutorado em Ciências Sociais, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Criada na periferia de Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo, Martins iniciou a graduação em Serviço Social na UFU, Campus Pontal, em 2015, por meio das políticas afirmativas de cotas. Para a pesquisadora, um dos motivos de, durante a graduação, se envolver e desenvolver debates sobre questões raciais é ter crescido na periferia e, desde a adolescência, participar de coletivos negros.

Mesmo com políticas de ações afirmativas e assistências estudantis que viabilizaram o ingresso e a permanência da pesquisadora na universidade, em paralelo, a pesquisadora atuou em vários outros trabalhos em Ituiutaba, Minas Gerais. Logo no segundo ano da graduação, lecionou em um cursinho pré-vestibular, e, durante esse período, se envolveu, também, com o Programa de Educação Tutorial (PET), monitorias em eventos, bolsas de extensão, estágios e trabalhos extras para auxiliar no seu sustento financeiro e conseguir finalizar seus estudos. 

Lutar para garantir o seu espaço, de acordo com Martins, “é onde devemos estar e permanecer, driblando as desigualdades e encarando elas de frente para conseguir seguir”. Foi com esse pensamento que durante um Encontro de História na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2018, teve seu primeiro contato com a obra de Lélia Gonzalez - antropóloga, historiadora, professora e filósofa, mulher negra que, transformou a sua visão sobre as questões raciais.

Tomando a obra de Lélia Gonzalez como ponto de partida, a intenção de evidenciar o avanço que a intelectual traz nas discussões sobre questões raciais, ainda na década de 1970, moveu a pesquisa de mestrado da pesquisadora, que buscou resgatar e manter a obra da intelectual presente no âmbito universitário.

 

Pensamento que ajuda a ler o ontem, o hoje e o amanhã

Foto colorida, com mulher negra em primeiro plano, usando turbante e brincos coloridos.
Para Martins, o pensamento de Gonzalez ainda é pouco explorado nas grades curriculares das universidades brasileiras. (Foto: Marco Cavalcanti)

“Eu falo isso na dissertação de mestrado: o pensamento de Lélia Gonzalez se mantém vivo”, afirma Martins. Ativista, professora, historiadora, filósofa, antropóloga e autora de vários livros, Lélia Gonzalez foi pioneira em pensar as relações de gênero, raça e classe na perspectiva brasileira, conhecida como tríplice dominação. 

O conceito da tríplice dominação explica como gênero, raça e classe no Brasil, revelam as articulações e exploração da colonização, principalmente, em relação à figura da mulher negra. A naturalidade com que visões racistas e sexistas sobre trabalho e corpo femininos são expostas no dia-a-dia são identificadas por Gonzalez no chamado mito da democracia racial. 

Nessa narrativa criada por volta dos anos de 1930, acreditava-se na ideia de um país miscigenado, com igualdade racial efetivada cordialmente entre negros, brancos e povos originários, negando a existência do racismo. O que Gonzalez percebe é o contrário, e uma antecipação do que seria a interseccionalidade - fatores sociais sobrepostos que impactam na vida do sujeito - termo criado pela ativista e professora Kimberle Crenshaw, em 1989: a visão amena de Gilberto Freyre, sociólogo e autor da obra “Casa-grande e Senzala”, sobre a formação da sociedade brasileira só omitia a discriminação e preconceito ainda existentes.

Em contraponto ao feminismo clássico, Gonzalez também discute as diferenças na divisão social, racial e sexual do trabalho latino americano.“Uma das reivindicações básicas do feminismo era o direito ao trabalho. As mulheres feministas da década de 1980 reivindicam o trabalho, mas as mulheres negras estão trabalhando. Inclusive na casa delas. Logo esse feminismo não contempla outras mulheres”, afirma a pesquisadora

Além de transgressora, a obra de Gonzalez contempla as raízes latino-americanas, quando observa as similaridades e as divergências nas experiências sociais e de gênero entre os países que foram colonizados. Essa é a fase em que Gonzalez expande seu pensamento na transnacionalidade, ou seja, para além das vivências brasileiras, a partir dos diálogos realizados com outras feministas. 

E mesmo ocupando lugares de evidência fora do país, a obra de Lélia Gonzalez no Brasil ainda sofre com poucos espaços em que está inserida. Intelectual e acadêmica ativa em movimentos sociais, ela abriu caminho para outras mulheres negras.

“Eu acho que resumiria o pensamento de Gonzalez como indispensável, para que a gente consiga ler a nossa realidade social brasileira a partir de uma perspectiva que se dá aqui, no Brasil”, diz Martins. “Ela auxilia para que a gente consiga ver que os nossos passos vêm mesmo de longe. Só é possível a gente ficar aqui porque essas mulheres tiveram antes abrindo, de fato, espaço para que a gente pudesse estar”, finaliza.

 

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Palavras-chave: #Ciência Mulheres Cientistas Lélia Gonzalez

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