Publicado em 18/11/2025 às 07:55 - Atualizado em 19/11/2025 às 17:27
Se a consciência é o estado de concepção de si enquanto indivíduo, bem como a realidade que nos rodeia, o que significa afinal falar em consciência negra? Este é um debate recorrente que não parece carregar consigo avanços quanto a sua relevância e ocasiona na perniciosa fala do, “eu acredito em consciência humana”. Afinal, qual a razão em afirmar que essa fala é nociva?
É importante entendermos que em nossa constituição, somos produto de um processo que leva a vida toda, passando pelos valores e práticas ensinados em casa, em contraponto com as relações que desenvolvemos com o coletivo que chamamos de sociedade, bem como os estímulos que ela produz, seja por meio de um diálogo ou consumo de alguma mídia, estamos em formação.
Entretanto, afirmar que compartilhamos de uma mesma “consciência”, é apagar todo o processo de constituição do nosso país. É apagar os pilares de sangue e exploração que sustentaram e ainda sustentam este país, por meio do extermínio e da violência racial, promovida contra a atual população negra e em tempos mais remotos, os povos escravizados.
O Brasil em sua essência é um país racista e que ainda hoje vende o mito da igualdade racial, um projeto criado para dar coesão a um país dividido entre escravizados e escravizadores. Este projeto nega a existência do racismo no país, dizendo que somos um só povo. Tal afirmação além de ser uma inverdade, busca esconder o legado da escravidão no país.
O problema de uma ideia tão distorcida, é justamente a fantasia que ela promove, onde as origens e história de diferentes povos se perde na massa considerada nação. Entretanto, inúmeras são as evidências de que isto é uma inverdade. Em 2024, de acordo com o Atlas da Violência, uma pessoa negra foi assassinada a cada 12 minutos no Brasil, entre janeiro de 2012 até o fim de 2022.
Outra problemática crescente é a perseguição às religiões de matriz africana, que tem seus terreiros invadidos, vandalizados e que por vezes, se encerram na morte destes praticantes. Se somos todos filhos da mesma nação, cobertos sob o véu da igualdade racial, qual então o motivo dos registros e dados, nos mostrar que há tanta violência tangenciando a negritude?
Não somos todos iguais e este é um dado que além de dado é experimentado cotidianamente pela população preta, por isso é importante que em momentos como o “Dia da Consciência Negra”, possamos discutir e rever nosso papel enquanto membros de uma sociedade arraigada no racismo. Seja ele, estrutural, geográfico, cultural, no Brasil carregamos conosco a máscara do racismo.
O racismo recreativo e as problemáticas do riso
O riso é ferramenta potente na perpetuação deste processo, como bem aponta Adilson Moreira, em sua obra Racismo Recreativo. O racismo maquiado pelo humor, carrega consigo um caráter mais virulento que suas outras expressões, justamente pela risada produzir um efeito de aceitação maior que uma agressão mais explícita.
Diversos personagens e estereótipos apresentados ao longo da história corroboraram para visões distorcidas que corriqueiramente são tomadas como verdades, que apontam para a marginalização e degradação do indivíduo negro, o que ocasiona na desumanização e no apagamento de toda uma trajetória, de toda uma vida.
Com isso, se torna essencial entendermos que ao tratarmos das personagens representadas e dos corpos pretos que elas contêm, estamos lidando com representações do social. Fragmentos da realidade que não devem ser adotados como verdade, mas sim como objetos de dúvida e refutação, que são dotados de símbolos e narrativas racistas.
Estas narrativas visam reiterar estruturas de violência e segregação, que nos são fundamentais para entendermos aquilo que se esconde por trás de uma imagem, personagem ou “piada”. Grande Otelo, interpretou múltiplos personagens que casam com essa narrativa, mas trataremos, aqui, do personagem intitulado Cachaça.
Grande Otelo
Antes de avançarmos, é importante entendermos o papel de Otelo não somente em contexto cultural, como também social. Nascido em 1915, Otelo passou pela recém-formada república brasileira. De origem pobre, deixa sua cidade de origem (Uberlândia) e enfrenta o mundo, em busca de um meio que viabilizasse sua subsistência, e nas artes se encontra ator.
Com formação em teatro, cinema, falante de inglês e francês, voz de tenor, viu de perto o que o mundo das artes podia oferecer a um corpo preto, dentro e fora do país. Mesmo com uma formação invejável, Grande Otelo possui sua imagem quase imersa nas turvas águas do esquecimento.
Desprezado em sua cidade e preso ao senso comum de seu papel como Macunaíma, seu legado evoca uma dualidade onde toda uma carreira, que se estende por décadas, se faz reduzida a um único papel, e parte disso, se dá pelo racismo recreativo, que se articula em personagens como o Cachaça, vivido no filme Assalto ao trem pagador.
Embora sua trajetória, por vezes, se faz reduzida à sua performance como Macunaíma (1969), Grande Otelo teve larga trajetória nos cassinos da Urca, no Rio de Janeiro. Tendo sua presença em momentos notórios como o caso de maio de 1944, quando performou junto de outros grandes nomes da época, como Linda Batista, Sílvio Caldas e Manuel Barcelos.
No evento em questão, era uma celebração para as tropas expedicionárias mandadas à Segunda Guerra. Evidentemente que em seu potentado artístico, chamou a atenção de celebridades internacionais como Nat King Cole e Josephine Baker, que em suas estadias no Brasil, fizeram questão de conhecê-lo.
Vale também ressaltar que o diretor Orson Welles, que dirigiu o famoso Cidadão Kane, tinha fascínio por Grande Otelo, dizendo ser um dos melhores atores do mundo. Gravaram o incompleto filme “É tudo verdade” e por várias vezes convidou o ator a viver nos Estados Unidos. Embora lisonjeiro o pedido, Grande Otelo preferiu ficar no Brasil, sua terra de origem.
Grande Otelo em seu apogeu deu vida a vários personagens que em sua essência eram representações estereotípicas e racistas, como o personagem Cachaça ou o “negrinho da boca de flor”. Entretanto, é importante ressaltar que a interpretação dessas personagens, coloca em Otelo um selo de racista ou alienado.
Otelo tinha pleno conhecimento que sofria as mazelas do racismo, fosse quando interpretava um personagem estereotípico, quando entrava pelos fundos no Cassino da Urca ou quando recebia uma soma muito menor por seu trabalho que Linda Batista e outros colegas de palco, trabalhando muitas vezes mais e mobilizando maior público.
Grande Otelo, é um personagem que nos permite verificar esse fenômeno. Um artista singular cuja formação perpassa, teatro, ópera e teledramaturgia, teve e tem sua história negligenciada, justamente por dar vida a personagens que corroboram para a banalização estereotípica.
Outro grande nome que transitou por estas veredas, foi Antônio Carlos Bernardes Gomes, homem negro, ator e grande sambista, que atuou como músico no grupo “Os originais do Samba”. Antônio, ou como é mais conhecido, Mussum, deu vida a um personagem que é consagrado na teledramaturgia brasileira.
Assim como o personagem Cachaça de Otelo, Mussum em sua essência é uma personagem que representa um homem negro, entregue ao alcoolismo e que explicita sua embriaguez em jargões e comportamentos degradantes. Embora problemático, a personagem é tida como querida e um arquétipo dos “bons tempos”, justamente pela prática do racismo recreativo.
O problema dessas representações é que elas produzem um efeito de verdade, onde a pessoa associa à imagem outros indivíduos, como um símbolo natural, fenômeno conhecido como representação social, como também constituem um processo de desumanização e legitimação da violência, que muitas das vezes acabam resultando em chacinas como as recém-exibidas no Rio.
Grande Otelo tinha plena consciência que estes trabalhos poderiam colaborar para uma percepção negativa, mas era lúcido quanto a isso. Afinal, falamos de um homem, negro, umbandista, que em tempos onde o racismo era ostensivo, precisava sobreviver e o fez, como um artista de carreira ímpar, por isso buscava registrar sua jornada.
É importante entendermos que falar em consciência negra é lembrar que, ainda hoje, pessoas sofrem uma violência que se perpetua e se adapta, por meio de linguagens múltiplas, justamente por serem representações sociais, como diz Serge Moscovici, pesquisador da área da psicologia social, em seu livro Representações Sociais.
As representações sociais nos dizem que um conceito não necessariamente se perde com o passar dos anos, utilizando-se dos mesmos conceitos, mas com uma diferente roupagem, personagens como Cachaça, Mussum, acabam se modificando à linguagem vigente e tendo o mesmo objetivo de outrora, de perpetuação de violências.
Portanto, se faz evidente que a data, mencionada por vezes neste texto, tem por função não ser apenas um feriado, mas sim, rememorar que somos diferentes e constituídos processos distintos e refletir sobre como temos falhado enquanto sociedade, tendo em vista que ações tomadas em 2025, seriam aplaudidas por seus antepassados em 1800.
*Magnun Vieira Barbosa é licenciado e bacharel em História e secretário do Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché
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Palavras-chave: Consciência Negra Grande Otelo Mussum racismo
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