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Leia Cientistas

Mulheres negras em movimento

Sueli Carneiro, Graça do Aché e suas articulações antirracistas na década de 1990

Publicado em 19/11/2025 às 12:51 - Atualizado em 21/11/2025 às 11:50

Sueli Carneiro (centro) durante evento no Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché, em abril de 2024 (foto: Acervo Jeremias Brasileiro/Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché)
Sueli Carneiro (centro) durante evento no Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché, em abril de 2024 (foto: Acervo Jeremias Brasileiro/Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché)

A trajetória da luta antirracista no Brasil é inseparável da ação política e intelectual das mulheres negras. Desde o período colonial até o processo de redemocratização do país, e pelas lutas contemporâneas, essas mulheres foram protagonistas de ações que desestabilizaram a lógica do mito da democracia racial e denunciaram as desigualdades estruturais que marcam o país. O reconhecimento jurídico do racismo como crime, inscrito na Constituição Federal de 1988, é resultado das ações realizadas pelo movimento negro, nas quais a presença feminina foi fundamental.

No entanto, qual a importância de uma luta que considere relevante as adversidades de raça, gênero e classe enfrentadas pelas mulheres negras?

As lideranças feministas negras compreendem que o enfrentamento ao racismo não pode ser feito separado do combate às opressões patriarcais e de classe que formam a sociedade brasileira. Dado isso, o feminismo negro brasileiro amplia a luta política ao propor uma análise interseccional das desigualdades, colocando as mulheres negras como protagonistas do debate sobre justiça social e democracia. Esta perspectiva implica reconhecer que o racismo e o patriarcado atuam de forma articulada, sustentando as bases de um sistema econômico e simbólico que perpetua desigualdades e violências para as populações marginalizadas.

A atuação das mulheres negras ativistas revela que a luta antirracista é, paralelamente, um projeto político e civilizatório, que almeja a superação das hierarquias raciais e de gênero, através da construção de uma vida e de uma cidadania plena. Assim, reconhecer e valorizar o protagonismo das mulheres negras na história e na contemporaneidade é, não somente valorizar suas trajetórias de vida, mas compreender que a democracia brasileira só se tornará plena quando for, de fato, negra, feminina e antirracista.

E quais mulheres negras podemos enaltecer neste mês?

Gostaria de apresentar, primeiramente, a professora Sueli Carneiro, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e fundadora do Geledés — Instituto da Mulher Negra, a primeira organização negra e feminista independente de São Paulo. Carneiro é uma das principais teóricas sobre a condição da mulher negra no Brasil e, também, a responsável por implementar o primeiro programa brasileiro de atenção à saúde física e mental voltado especificamente para mulheres negras, no qual mais de trinta participantes são atendidas semanalmente por psicólogos e assistentes sociais.

Em sua trajetória como ativista e intelectual, ano antes, em 1988, Sueli Carneiro foi convidada a integrar o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em Brasília. Em 1992, após denúncias de um grupo de rappers da cidade de São Paulo, que buscavam proteção por serem vítimas recorrentes de agressões policiais, Carneiro criou um plano específico voltado à juventude negra: o Projeto Rappers. Nesse projeto, os jovens atuavam como agentes de denúncia e disseminadores da consciência racial e cidadã entre seus pares.

Em 1981, Sueli Carneiro tentou, pela primeira vez, ingressar no mestrado. Naquele contexto, a academia ainda não reconhecia o pensamento africano como um campo legítimo de estudo. Produzir conhecimento universitário a partir de uma perspectiva negra era — e continua sendo — um desafio árduo. Contudo, a militância convocava Sueli para a luta. Foi nesse período que ela começou a formular o conceito de Dispositivo de Racialidade, conceito que foi desenvolvido em sua tese de doutorado

Dividida em três partes, a tese que se tornou livro. Dispositivo de Racialidade propõe analisar o racismo e as relações raciais entre brancos e negros no Brasil sob uma perspectiva filosófica. Fruto de uma reflexão que articula a “ação teórica e a ação prática de tipo militante sobre a questão racial no Brasil”, a obra apresenta um olhar inovador, voltado tanto à opressão racial quanto aos modos de resistência estrategicamente adotados pelos movimentos negros e de mulheres negras brasileiras.

Para Carneiro, a permanência na escola e as ferramentas oferecidas pela educação formal — em especial a leitura — são fundamentais para o desenvolvimento de uma consciência crítica. Contudo, ela ressalta que a autonomia de pensamento também é fomentada pelos processos de aprendizagem extraescolar.

Nesse sentido, a jornalista e escritora Bianca Santana menciona, na única biografia reconhecida pela professora Sueli Carneiro (Continuo Preta, 2021) que todos os que visitavam Salvador voltavam extasiados com a experiência do Bloco Afro Ilê Aiyê, criado em 1974, no bairro do Curuzu, Salvador, Bahia, por Vovô (Antônio Carlos dos Santos), com a bênção de Mãe Hilda Jitolu, ialorixá do Ilê Axé Jitolu e sua mãe biológica. Inspirada no Ilê Aiyê e reconhecendo a importância do fortalecimento, valorização e difusão das culturas afro-diaspóricas, Sueli Carneiro decidiu criar, ela também, um bloco de carnaval denominado “Bloco Afro Aláfia” como instrumento da valorização identitária negra.

Convite do Bloco Afro Aláfia
Convite do Bloco Afro Aláfia

A partir de agora, apresento a trajetória de uma mulher negra, da cidade de Uberlândia, que também foi relevante para a organização da luta antirracista não na academia ou em ações de dimensão nacional, mas em sua cidade, junto à sua comunidade, Graça do Aché. As trajetórias de Sueli Carneiro e Maria da Graça do Aché convergem na valorização da cultura negra e na utilização do carnaval como espaço de educação, resistência e afirmação identitária. Ambas compreenderam a importância das manifestações culturais negras como instrumentos políticos de emancipação. 

E quem foi Maria da Graça Oliveira, a Graça do Aché?

Maria da Graça nasceu em 12 de novembro de 1949, no bairro Patrimônio, o mais antigo de Uberlândia/MG, atualmente com 167 anos de existência. Advinda de uma família simples, migrou aos 20 anos para a cidade de São Paulo em busca de trabalho. O Bloco Aché, criado por ela, surgiu de uma ideia compartilhada com seu marido, Saturnino, a partir da observação do contexto brasileiro da época e, principalmente, da forma como as pessoas negras eram representadas pela principal mídia do período: a televisão. Em 1988, a Rede Globo divulgou uma vinheta comemorativa com diversos artistas negros em celebração ao Centenário da Abolição da Escravatura. A partir dessa inspiração, Graça e Saturnino decidiram criar um bloco carnavalesco que também celebrasse o centenário da abolição.

Com o passar dos anos, o Bloco Aché tornou-se o mais popular da cidade. O seu crescimento foi tão notável que, em certo momento, o bloco reuniu mais integrantes do que as escolas de samba mais tradicionais de Uberlândia. Esse fortalecimento possibilitou a ampliação da atuação de Maria da Graça como articuladora da união entre diferentes grupos de cultura negra — Congado, escolas de samba, Reisados, entre outros —, que resistiam e resistem ao racismo estrutural fortemente presente na cidade. Nesse sentido, o bloco causou grande repercussão na sociedade uberlandense, sobretudo por evidenciar, em suas apresentações, aspectos da negritude e do orgulho racial em um contexto social marcado por práticas racistas e preconceitos historicamente atualizados conforme as temporalidades e que ainda não desapareceram.

Graça do Aché foi precursora na promoção da conscientização social e racial em Uberlândia. Seu principal foco eram os jovens negros e negras, que ela via como “pedras preciosas a serem lapidadas”. Através do Grêmio Recreativo do Bloco Aché, mesmo sem ter tido acesso à educação formal, investiu na criação de espaços educativos, pois acreditava na educação como um meio de transformação das vidas dos jovens negros. Nesse sentido, desenvolveu ações com o objetivo de conscientizar a juventude preta da periferia, promovendo iniciativas como cursos gratuitos de informática voltados à comunidade negra da cidade, assim como rodas de conversa com meninas pretas sobre a prevenção da gravidez na adolescência. Em todas essas ações, instruía-as a estudar, pois, para Maria da Graça, era por meio da educação que os jovens negros poderiam romper com a subalternização imposta por uma sociedade racista e excludente. 

Centro de Memória

Atuando de forma alinhada aos objetivos de Maria da Graça, o Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché é um importante equipamento cultural vinculado à UFU, atuando no sentido de aquilombar a população preta de Uberlândia e região. Perpetuando assim o sonho de Maria da Graça. Gostaria de ressaltar aqui que, de acordo com Abdias Nascimento (O Quilombismo: Documentos de uma militância pan-africanista, 1980) o “quilombismo” está relacionado à construção de uma sociedade coletiva, humanitária e democrática. Logo, os espaços de aquilombamento são essenciais, pois é neles que as culturas e vivências negras afro-diaspóricas podem ser preservadas, fomentadas e respeitadas.

Ao abordar temáticas relacionadas à cultura negra — como o Congado, o carnaval, a capoeira, as religiões de matrizes africanas, e a história de Maria da Graça e do Bloco Aché também no ambiente escolar, o(a) docente aproxima o(a) discente negro(a) dessa narrativa, propiciando assim uma sensação de pertencimento e protagonismo que resulta em maior engajamento, interesse e participação nas aulas. É fundamental ver para poder ser. Ao valorizarmos as mulheres negras e suas contribuições tanto no campo acadêmico e nacional, quanto no ativismo pela cultura, em sua dimensão local, confirmamos que a máxima de Angela Davis, sobre o movimento das mulheres negras, movimentar toda a sociedade, realmente representa a realidade. 

 

Ana Marília Alves Simões  é licenciada e discente do bacharelado em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Foi pesquisadora Fapemig, estagiária no Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché e membro do Grupo de Pesquisa Estudos Negros. E-mail: ana.simoes@ufu.br.

 

A seção "Leia Cientistas" reúne textos de divulgação científica escritos por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São produzidos por professores, técnicos e/ou estudantes de diferentes áreas do conhecimento. A publicação é feita pela Divisão de Divulgação Científica da Diretoria de Comunicação Social (Dirco/UFU), mas os textos são de responsabilidade do(s) autor(es) e não representam, necessariamente, a opinião da UFU e/ou da Dirco. Quer enviar seu texto? Acesse: www.comunica.ufu.br/divulgacao. Se você já enviou o seu texto, aguarde que ele deve ser publicado nos próximos dias.

 

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Palavras-chave: centro de memória da cultura negra Consciência Negra Mulher Graça do Aché

Sueli Carneiro (centro) durante evento no Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché, em abril de 2024 (foto: Acervo Jeremias Brasileiro/Centro de Memória da Cultura Negra Graça do Aché)

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