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Leia Cientistas

A leitura modifica vidas

A obra Um defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, e a construção do antirracismo

Publicado em 21/11/2025 às 14:52 - Atualizado em 25/11/2025 às 07:30

Isabel Lopes: "O texto de Ana Maria Gonçalves extrapola os limites da ficção, torna-se peça fundamental na construção de outras mulheres"

Sento-me, agora, com a responsabilidade, ousadia, talvez, de escrever acerca da obra Um defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Sempre acreditei que sou melhor lendo do que escrevendo. Esforço-me e faço esse exercício de escrita, porque tenho medo de que um dia esqueça-me do que aprendi com a leitura. Ao escrever, recuso-me do esquecimento, porque esquecendo, afasto-me da pessoa que quero ser. Por isso,  escrevo, por recusar esquecer. 

Começo este texto, semelhante ao início do livro, ressaltando a força da serendipidade, aquelas situações em que quando estamos à procura de algo e encontramos outra, que já deveríamos estar preparadas. Assim, como o livro, o texto que escrevo é fruto de serendipidade. Primeiramente, gostaria de narrar o modo como eu e minha irmã, Raquel Virginia Lopes, nos aproximamos de Um defeito de Cor

A primeira aproximação aconteceu em fevereiro de 2024 através do desfile de Carnaval do Rio de Janeiro, por meio da transmissão televisionada, em que a Escola de Samba Portela desfilou com o enredo inspirado na personagem principal da obra, Kehinde. Alguns dias depois, através de uma reportagem do O Globo, em que a atriz Taís Araújo destacou o aumento da venda do livro, salientando ser o Carnaval um dos meios de comunicação de maior alcance do Brasil. Além disso, nesta ocasião a atriz ressaltou a falta de jurados negros nas avaliações dos desfiles.

Isabel se deparou com a obra “Um defeito de cor”: serendipidade (Foto: arquivo pessoal)
Isabel se deparou com a obra “Um defeito de cor”: serendipidade (Foto: arquivo pessoal)

Em março deste mesmo ano, participamos do VI Copene-CO - (Congresso Brasileiro de Pesquisadoras/es Negras/os da Região Centro-Oeste), ocorrido na Universidade Federal de Goiás (UFG) - Campus Samambaia, em Goiânia. Copene é um congresso que ocorre anualmente nas diferentes regiões do Brasil e bienalmente em edição nacional. Cabe destacar que o evento é organizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN), diz respeito a um evento acadêmico importante para a discussão de temáticas alinhadas à luta antirracista. 

 Na ocasião do VI Copene-CO 2024, nos hospedamos na casa da madrinha de minha irmã, Adriana Fonseca Pereira. Entre cafés, conversas, livros e risadas, surgiu o assunto acerca do livro de Ana Maria Gonçalves. Ela o tinha. Guardava em mim a vontade de ler aquele livro, de conhecer a história da mãe que estava à procura pelo filho, que inspirou um desfile da Escola de Samba Portela. No momento da despedida, do retorno para casa, com a mala cheia de aprendizados advindos da participação no Congresso, uma surpresa: poderíamos trazer o livro, lindo, de capa dourada. Era a edição comemorativa de 10 anos de publicação. Serendipidades…

Serendipidade, “aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados” (página 9).

Um defeito de cor, em suas novecentas páginas, leva as pessoas que o leem a ouvir uma mulher, narrando suas memórias, suas histórias. Uma narrativa ancestral, em que uma mulher negra conta sua história, e ao mesmo tempo, a história de outras mulheres. Através da história da vida de Kehinde, é remontada a história do Brasil. A narrativa ensina que a busca não é algo vazio.

 Assim, a história de uma mulher é construída pela história de muitas outras mulheres. Neste sentido, o texto de Ana Maria Gonçalves extrapola os limites da ficção, porque ao narrar a vida da personagem Kehinde e das outras personagens, torna-se peça fundamental na construção de outras mulheres, fora da narrativa. Contribuindo, até mesmo, para a construção de uma identidade brasileira. Isso se deve à narrativa atrelar aos fatos ficcionais acontecimentos históricos,  a começar do título do livro e também a Revolta dos Malês.

Durante a leitura, por vezes, me peguei pensando e repensando acerca do que fora lido, como se Kehinde, já idosa, estivesse conversando comigo, e assim dizendo: “a vida da gente pode ser dividida em espaços de tempo, ou por lugares, ou os dois juntos, da mesma maneira que dividimos uma história?” (página 718).

Além dos espaços que a leitura nos transportou de maneira ficcional, ela nos levou para os espaços reais. Por exemplo, ao minicurso intitulado: Saberes resistentes que tecem libertação: Descolonizando a Educação e Filosofia por meio do Feminismo Negro, o qual ministramos no II Colóquio Filosofias Insubmissas — evento acadêmico realizado em novembro de 2025, tendo como temática A arte como potência de vida e multiplicidade.  Nesse minicurso, em um momento prático, propomos aos participantes a leitura literária desta obra como ferramenta necessária na construção de uma educação antirracista, porque proporciona letramentos. Letramentos enquanto prática social, ferramenta de interação, que contribui para construir sentidos. Sendo assim, Um defeito de Cor faz-se caminho de letramentos: racial e literário, concomitantemente. Um livro, uma leitura podem, então, modificar vidas. Talvez, seja esse o sentido principal  da leitura e do letrar-se. 

 

*Isabel Maria Lopes é doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia (PPGED/Faced/UFU).

 

 

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Palavras-chave: livro Consciência Negra racismo

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