Publicado em 01/07/2020 às 15:18 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:52
Em 04/05/18: Refugiados venezuelanos abrigados provisoriamente em Boa Vista (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/Fotos Públicas)
No contexto das migrações internacionais, os fluxos migratórios contemporâneos conferem diversidades quanto às motivações para migrar e características sociodemográficas. De forma geral, quanto ao perfil do migrante internacional, pesquisadores concordam que o maior contingente de pessoas em deslocamento no mundo, coincide com imigrantes econômicos e refugiados.
No contexto da migração estrutural, os imigrantes econômicos são os que decidem sair de seu país de origem em busca de melhores condições de trabalho e renda em outro país. Em geral, partem de países mais pobres em direção aos países mais desenvolvidos.
Já os refugiados, compõem a migração forçada, na qual, existem fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.
Para o The High Commissioner for Refugees (UNHCR), 1% da população mundial está deslocada, o que representa 1 em cada 97 pessoas. Em seu último relatório, foi contabilizada a existência de 79,5 milhões de pessoas no mundo forçadas a se deslocar até o fim de 2019, sendo que 20,4 milhões estão sob o seu mandato, além de 4,1 milhões de solicitações de refúgio em análise.
Ainda, 68% dos refugiados são provenientes da Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar. A maioria, 73%, é abrigada em países vizinhos aos de sua origem e 85% estão em países em desenvolvimento. O último relatório do UNHCR, também indica o percentual de refugiados no mundo, quais sejam: África (39%), Américas (18%), Oriente Médio e Norte da África (18%), Europa (14%) e Ásia e o Pacífico (11%).
Em termos de deslocamentos de refugiados, os anos de 2018 e 2019 figuram como os de maior notoriedade quanto ao número e, situações de catástrofes em decorrência das travessias. Foram noticiados inúmeros acidentes e mortes com refugiados em travessias clandestinas pelo mar Mediterrâneo rumo à Europa, além de tentativas terrestres frustradas para a América do Norte.
No que tange às Américas, pesquisadores apontam para um maior incremento de refugiados nos últimos anos, em especial o ano de 2019, o que resultou em dificuldades expressivas de abrigo, sobrecarga nos sistemas locais de recepção, além de práticas xenofóbicas, violência e enrijecimento nas políticas migratórias, em especial, nos Estados Unidos da América (EUA).
Nesse contexto, chama a atenção o expressivo número de venezuelanos (4,5 milhões) que buscaram refúgio em países da América Latina e no Caribe; cerca de 470 mil refugiados do norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras) em busca de abrigo nos EUA; mais de 70 mil pessoas em deslocamento da Nicarágua para a Costa Rica e, cerca de 90 mil deslocados forçados da Colômbia para Equador, e outros países da América Latina.
No Brasil, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão pertencente ao conselho da agência do UNHCR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR), reconheceu 11.231 pessoas como refugiadas, desde a sua criação, até o fim do ano de 2018. Destes, os sírios representam 36%, seguidos dos congoleses, com 15%, e angolanos, com 9%.
Além destes, cientistas sinalizam para a existência de um maior número de solicitantes de refúgio, em especial, de venezuelanos e outras nacionalidades, oriundas dos deslocamentos das Américas.
Somente no ano de 2019, o CONARE registrou cerca de 80 mil solicitações de refúgio. Destas, 61.681 foram de venezuelanos, 7 mil de haitianos, 2.749 de cubanos, 1.450 de chineses e 947 solicitações de bengaleses. Dentre os estados com maior número de solicitações de refúgio estão, Roraima (50.770), Amazonas (10.500) e São Paulo (9.977).
Para os pesquisadores, esse fluxo migratório sul-sul, no qual o Brasil passa a ser país de atração e recepção para migrantes internacionais, decorre inicialmente da crise econômica mundial de 2007-2008, ocasião em que a estabilidade econômica brasileira despertou interesse mundial e, posteriormente, reflete situações de conflitos e questões político-econômicas e sociais dos países do cone sul.
Do ponto de vista da saúde coletiva, destaca-se o desafio contínuo de políticas locais e de Estado para o enfrentamento da realidade posta, no sentido de garantir direitos humanos aos refugiados, em concordância com o que rege a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, ratificada pelo Brasil, a Constituição Federativa do Brasil (1988) e a Lei de Migração Lei nº 13.445/2017, no que tange, dentre outros, a garantia à saúde universal.
Dificuldades encontradas pelos refugiados no acesso à saúde
No Brasil, a saúde é um direito de todos e dever do Estado, conforme institui a Constituição Federal de 1988. O Sistema Único de Saúde (SUS) criado e organizado a partir das Leis Orgânicas da Saúde (LOS) 8.080 e 8.142 de 1990 defende a saúde, como um direito universal, sem qualquer distinção de raça, cor, nacionalidade, dentre outras, a toda pessoa que estiver no território brasileiro.
Na prática, além da transposição das barreiras fronteiriças, os refugiados encontram outros limites para acesso à saúde. No primeiro momento, a questão documental para acesso aos serviços e ao cartão SUS reflete uma realidade restritiva. Muitos refugiados chegam ao Brasil sem documento de identificação pessoal, o que requer um tempo maior para os trâmites legais entre consulados e seu país de origem.
Ademais, para regularizar a sua situação migratória no país de destino, é necessário solicitação de agendamento e trâmites internos na Polícia Federal, o que pode transcorrer um tempo maior até mesmo pelo desconhecimento e dificuldades encontradas pelos refugiados.
Além destas, pesquisadores acentuam a dificuldade de comprovação de residência, já que muitos refugiados migram através de formação de redes de contato e, ao chegar ao país de destino, compartilham a moradia com várias famílias, reduzindo dessa forma, a possibilidade de comprovar residência em seu nome, exigência para o cartão SUS em algumas partes do país.
Segundo pesquisadores, outra barreira encontrada é a dificuldade com o idioma local, o que impede o acesso ou permite um contato ineficaz entre paciente e médico, o que resulta, na maioria dos casos, em não continuidade do tratamento ou tratamento incorreto, o que pode ocasionar danos à saúde.
Outro ponto de consenso entre os pesquisadores é a barreira cultural, tanto em relação à negação das práticas brasileiras pelos refugiados, como o desconhecimento ou desrespeito de profissionais de saúde às crenças e práticas culturais adotadas por outras nacionalidades.
Medidas exitosas em Saúde Coletiva para o atendimento à população refugiada
Embora existam dificuldades, cabe salientar a existência de medidas exitosas adotadas, principalmente na cidade de São Paulo, no tocante à melhoria dos serviços para atendimento aos refugiados e imigrantes e, que podem servir de direcionamento para outras políticas públicas estaduais e federais.
Através do Decreto 57.533 - que institui a Política Municipal para a População Imigrante - e a Lei 16.478 - que Institui a Política Municipal para a População Imigrante, que dispõe sobre seus objetivos, princípios, diretrizes e ações prioritárias, bem como sobre o Conselho Municipal de Imigrantes-, ambos publicados no ano de 2016, a cidade de São Paulo, em especial o setor saúde, se organizou para o atendimento às necessidades dos imigrantes e refugiados.
Dentre as estratégias traçadas, destacam-se a formação de servidores públicos da ponta para atendimento a essa população e a contratação de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) de nacionalidades diversas, para atuarem nas unidades de saúde e acompanharem com conhecimento idiomático e cultural, as demandas da população do território de sua área de abrangência. Dessa forma, um ACS boliviano, por exemplo, tem atuação na unidade de saúde central, com maior número de imigrantes dessa nacionalidade.
Cabe destacar também, a criação do Centro de Referência e Atendimento a Imigrantes (CRAI), de acordo com a divisão de distrito sanitário e local de moradia na cidade, o que permitiu para além dos atendimentos, mapear e sistematizar a base de dados no município, para melhor conhecer e planejar ações voltadas a essa população.
Cientistas estimam que até 2030, os movimentos migratórios serão direcionados para as regiões metropolitanas, considerados locais com cerca de 1,5 milhões de habitantes, o que implica em urgente necessidade de planejamento para receber um fluxo maior de pessoas (refugiados e imigrantes), que necessitarão usufruir dos mesmos serviços já instalados nesses municípios.
Nessa direção, as experiências exitosas aqui apontadas e outras por ventura adotadas em outros municípios, poderão servir de auxílio para formulação de políticas, planejamento por meio de informações sistematizadas, organização dos processos de atendimento e monitoramento no acesso aos serviços de saúde, uma vez que o SUS é um sistema universal, inclusivo e não discriminatório.
*Vivianne Peixoto da Silva, Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Migração, Saúde e Trabalho (MIGRAST) e docente da graduação em Saúde Coletiva (Gestão em Saúde Ambiental) e da Pós-graduação em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador.
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