Publicado em 08/03/2023 às 10:00 - Atualizado em 22/08/2023 às 17:04
Foto: Milton Santos
“Felicidade! Passei no vestibular, mas a faculdade é particular”. O ano era 1969 e o sambista brasileiro Martinho da Vila, em seu primeiro álbum, fazia crítica ao sistema educacional privado vigente no país. A década havia registrado um crescimento significativo de pessoas alfabetizadas. Conforme o Censo Demográfico de 1960 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 60,52% dos mais de 70 milhões de brasileiros “eram capazes de ler e escrever um bilhete simples, em um idioma qualquer”. O número era quase o dobro daquele registrado seis décadas antes, no Censo de 1900: 34,66% de alfabetizados.
Se a alfabetização dos brasileiros dobrou em pouco mais de meio século, o Ensino Superior triplicou. Conforme o médico e pesquisador Antônio Carlos Pereira Martins, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), no final do século XIX havia cerca de 10.000 estudantes matriculados nas 24 Instituições de Ensino Superior (IES) existentes em território nacional, todas públicas. Porém, a Constituição de 1891 autorizou a criação de estabelecimentos privados, o que modificou significativamente o cenário.
Em 1960 eram 226.218 matrículas no Ensino Superior, sendo um pouco mais de 41% destas em instituições privadas. "A pressão de demanda levou a uma expansão extraordinária no Ensino Superior no período 1960-1980, com o número de matrículas saltando de aproximadamente 200.000 para 1,4 milhão [...]. Em finais da década de 1970 o setor privado já respondia por 62,3% das matrículas, e em 1994 por 69%", registra Pereira Martins.
“Livros tão caros, tanta taxa pra pagar, meu dinheiro muito raro, alguém teve que emprestar.” Mesmo com a rápida expansão, a letra de “Pequeno Burguês” segue mostrando as dificuldades pelas quais passam os estudantes que buscam formação no setor privado. O triste fato é que o Ensino Superior público no Brasil, há décadas, não garante a todas as cidadãs e aos cidadãos o estabelecido na Constituição de 1988: o direito à Educação.
No Artigo 6º a Educação figura como um dos direitos sociais básicos de brasileiras e brasileiros, porém o Artigo 205 avança e define: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
Tais definições, conquistas da “Constituição Cidadã”, foram alcançadas com muita persistência por educadores e movimentos sociais, justamente por entender a importância da Educação como propulsora social e vislumbrar a resistência de algumas partes da sociedade brasileira à sua realização plena. É famosa a frase do antropólogo Darcy Ribeiro, durante um Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1977, que afirma: “a crise da Educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”.
Mas será que 46 anos depois dessa afirmação o projeto ainda persiste? A quem ele interessa e como vem sendo posto em prática? Hoje a série #UFURESISTE - Seis anos de Teto de Gastos analisa os interesses que sustentam a defesa da política fiscal do Teto de Gastos aplicada ao setor da Educação, especialmente procurando identificar quem ganha com o sucateamento das instituições de Ensino Superior públicas no Brasil. O artigo de opinião compõe a série produzida pela Conexões em colaboração com a Diretoria de Comunicação Social da Universidade Federal de Uberlândia (Dirco/UFU) e que vem sendo publicada conjuntamente nas últimas quatro semanas.
O ano agora é 2016. Desde a promulgação da última Constituição Federal, muitas coisas mudaram no cenário educacional e político do país, que entrou no novo século com mais de 2,5 milhões de estudantes matriculados no Ensino Superior, 67% deles, na rede privada. As primeiras duas décadas do século XXI foram um período de grande expansão da Educação Superior, chegando a um total de 2.407 instituições em 2016, sendo 2.111 de natureza privada, o que representava 87,7% do total, conforme o Censo da Educação Superior 2016.
Neste ano, estavam matriculados 8.048.701 estudantes, sendo mais de 75% deles na rede privada. Classificadas em universidades, centros universitários ou faculdades, as instituições privadas agora possuem diferentes exigências e critérios de avaliação. Ampliaram-se também os cursos na modalidade à distância. No Censo 2016, das 10.662.501 vagas ofertadas, 6.180.251 eram presenciais e 4.482.250, à distância.
A rede pública também passou por uma expansão, saltando de 176 instituições, em 2000, para 296, em 2016, com 1.990.078 matriculados. Tais mudanças decorrem de políticas públicas de fortalecimento e ampliação de acesso lideradas pelo Governo Federal. Iniciativas como o Projeto Reuni, que incentivou a criação de novas instituições e cursos; além de políticas públicas de equiparação social que permitiram melhorar o acesso, como a Lei de Cotas, e de Assistência Estudantil, que garantiram a permanência dos estudantes. O Ensino Superior público parecia, enfim, passar por um ciclo virtuoso de crescimento, não apenas quantitativo, mas também qualitativo.
Os ventos começam a mudar quando a presidente eleita, Dilma Rousseff, é impedida de seguir no cargo e seu vice, Michel Temer, assume, defendendo uma bandeira neoliberal. Uma das primeiras medidas é a implementação de uma Emenda Constitucional que limita os gastos públicos e atinge drasticamente o orçamento da Educação. Aprovada em dezembro de 2016, os impactos da emenda começaram a aparecer em 2017, como a Conexões vem apresentando ao longo das últimas semanas.
Além dos cortes, que chegaram a resultar, em 2022, no menor orçamento da década para a pasta da Educação, uma série de reformas foram implementadas pelo sucessor de Temer, em desacordo com o Plano Nacional de Educação 2014/2024. Outras tantas ideias esdrúxulas, como cobrança de mensalidade e distribuição de vouchers foram postas em circulação na gestão Bolsonaro e, imagino, não tenham avançado graças a uma pandemia que assolou o mundo inteiro e acabou desviando a atenção do Governo Federal.
Os repetidos e violentos ataques à Educação Pública brasileira fazem ressoar a frase de Darcy Ribeiro. Sim, o projeto persiste e ele é posto em prática, entre outras estratégias, com o esgotamento financeiro das instituições.
Mas ainda resta saber a quem ele beneficia. A meu ver, há muitas respostas possíveis, mas destaco duas. Primeiro, o desmonte da Educação Pública fortalece um projeto econômico ultraliberal, que visa ao lucro de grandes corporações de Educação Privada.
Esse movimento pode ser percebido ao identificar as cifras bilionárias que são movimentadas pelo setor, seja no expressivo número de matrículas, seja nas recorrentes operações de fusão e aquisição de pequenas instituições por grandes conglomerados, seja pelo forte lobby das instituições junto aos poderes públicos. Em 2022, uma única transação foi avaliada em 3 bilhões de reais. No total, foram 39 transações semelhantes apenas no primeiro semestre do ano passado.
Além disso, foram amplamente divulgadas, no início da gestão Bolsonaro, as ligações do então ministro da Economia, Paulo Guedes, com grandes fundos de investimento que tinham diversos negócios na Educação. O possível conflito de interesses chegou a ser investigado pelo Ministério Público Federal, mas o caso foi encerrado em 2020.
Uma segunda resposta, que precisa ser considerada é a guerra ideológica. Um dos elementos mais conhecidos dessa "guerra" é o Projeto Escola Sem Partido, que acusa professores, especialmente do Ensino Público, de doutrinar estudantes e prega a retirada ou modificação de conteúdos que estejam em desacordo com suas convicções ideológicas. Este discurso se reflete no cotidiano dos profissionais que atuam no setor da Educação. Segundo a Varkey Foundation, em uma pesquisa de 2020, o Brasil é, entre 35 países analisados, aquele em que docentes têm a menor valorização.
Embora, num primeiro momento, pareça que não, esse discurso também ajuda a sustentar um projeto econômico ultraliberal, além de fortalecer as correntes políticas autoritárias. A retirada ou o não aprofundamento de conteúdos como História e Sociologia, por exemplo, resultam na formação de profissionais acríticos, que servirão como força de trabalho para alimentar o mesmo sistema, além de perpetuar os mandatários do governo no poder.
"Felizmente, eu consegui me formar, mas da minha formatura não cheguei participar. Faltou dinheiro prá beca e também pro meu anel. Nem o diretor careca entregou o meu papel…" Mais de 50 anos se passaram e Martinho da Vila segue mais atual que nunca, num triste Brasil onde o direito à Educação ainda perde espaço para a busca desenfreada do lucro.
O Ensino Superior público passou por grande crescimento nas primeiras décadas do século XX, com ampliação das políticas de acesso e permanência. (Foto: Milton Santos)
Política de uso: A reprodução de textos, fotografias e outros conteúdos publicados pela Diretoria de Comunicação Social da Universidade Federal de Uberlândia (Dirco/UFU) é livre; porém, solicitamos que seja(m) citado(s) o(s) autor(es) e o Portal Comunica UFU.
A série "ESPECIALUFU45" reúne textos escritos por membros da equipe da Diretoria de Comunicação Social (Dirco), mas também está aberta à contribuição de outros integrantes da comunidade acadêmica da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). As sugestões de temas a serem abordados, bem como o envio de materiais para avaliação e, em caso de aprovação, posterior publicação, podem ser realizados por meio do formulário eletrônico disponível em: www.comunica.ufu.br/divulgacao.
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