Publicado em 07/06/2023 às 17:37 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:38
A professora, pesquisadora e artista visual se surpreendeu quando foi abordada para uma entrevista. “Eu pensei: ‘gente, como foi que ela chegou até mim?’”, contou, com um sorriso no rosto.
Chegar até Tatiana Ferraz foi um acaso que só a ciência e a cultura podem proporcionar. Por meio de um vídeo compartilhado pela artista visual Eduarda Cardoso, ex-orientanda dela, a pesquisadora apresentava o trabalho denominado “Obras tridimensionais feitas por artistas mulheres adquiridas pelo museu por meio dos Panoramas”. Ele é fruto da seleção de projetos do Laboratório de Pesquisa Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Mas, essa história começa bem antes. "Eu demorei um pouco para me localizar depois de terminar a escola. Eu era muito jovem, tinha 17 anos, e achava que eu não queria fazer faculdade naquele momento. Até que eu tive a oportunidade de morar fora, morar no Canadá; tenho uma tia que mora lá até hoje e fui ficar uns meses lá”. A mudança permitiu um contato com a arte de perto, já que as amigas da tia de Ferraz eram artistas.
Entre idas e vindas, na segunda parte da história da pesquisadora no Canadá, ela recebeu um convite: acompanhar uma das amigas na montagem de uma instalação na Bienal de São Paulo. A ideia era que Ferraz fosse uma assistente, muito próxima da profissão almejada naquele momento pela jovem: arquitetura e urbanismo.
A experiência e o convívio abriram possibilidades. Mesmo assim, Ferraz insistiu na Arquitetura e cursou a graduação na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) por seis meses. “Odiei. Apesar disso, eu tive três aulas fundamentais para a minha formação: uma com a Raquel Rolnik, uma urbanista que depois foi dar aula na USP [Universidade de São Paulo]; a outra era com [Wilson] Caracol, aula de projeto e desenho; e a outra com a Sofia Teles, que também é uma historiadora e socióloga muito importante que dava uma aula de arquitetura moderna que era incrível”.
Com o sonho de morar em São Paulo, Ferraz saiu de Campinas (SP) e mudou para a capital para estudar Artes Plásticas na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Com a forte característica de uma aluna crítica e até insatisfeita, a pesquisadora percebeu, nesse momento de sua trajetória, que voltaria ao mundo universitário. “Desde sempre, fiquei com essa certa vontade de voltar para a universidade como professora um pouco por isso, para tentar desconstruir essa sensação que eu tinha que, no ensino público, os professores já estavam muito atrasados e desmotivados”, comentou.
A insatisfação fez com que Ferraz tentasse, novamente, ser arquiteta, agora na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Não deu certo. “Fiquei dois anos e meio e também não gostei do curso. É óbvio que tinha alguns professores que eu gostava, que eu me identificava. Jorge Carvajal, que já faleceu, era um professor muito interessante, arrojado, que trabalhou com a Regina Silveira, uma artista plástica importante. E alguns outros, como o Fernando Campana, infelizmente também falecido, um designer que me deu uma aula super bacana [...] para desenvolver um elemento vazado, que é um cobogó, dentro do laboratório de cerâmica. Foi muito bacana; é um trabalho que eu guardo até hoje”, relata.
Dois anos depois de deixar a FAAP, Ferraz se formou em Artes Plásticas, pela Unesp, em 2000. Logo começou a produzir trabalhos artísticos que demonstraram seu olhar vinculado com a Arquitetura, pensando no espaço e lado construtivo da arte. Até que sua mãe trouxe um recorte de jornal que falava sobre um grupo de professores insatisfeitos com o ensino de arquitetura em São Paulo que fundaram a Escola da Cidade em 2002. Foi o momento de retomar o estudo de arquitetura. “A ideia era, justamente, que os alunos e alunas pudessem vivenciar essa urbanidade na veia. Enfrentar os problemas, não ficarem afastados dos problemas, mas pensar a cidade no seu núcleo”, descreve.
Foram três anos morando no Edifício Copan, projeto de Oscar Niemeyer, no centro de São Paulo, trabalhando pela manhã e estudando à tarde. Até que chegou o momento de fazer mestrado: “Quando eu entrei na ECA [Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo], eu tinha uma aflição ‘eu demorei tanto para me achar e agora eu sinto que é isso’”.
A professora conta que sente que trabalha à margem, “entre as coisas”: “não era arquitetura, não era arte, no sentido das coisas meio misturadas”. Com a energia dos vinte e poucos anos, Ferraz escolheu e foi escolhida pela professora Sônia Salzstein Goldberg para orientá-la em uma pesquisa sobre obras tridimensionais intitulada “Trabalhos de escala ambiental: a escultura moderna em questão”.
“Para mim, o mestrado foi um aprendizado de pesquisadora. Eu não quis fazer o mestrado sobre o meu trabalho, eu queria olhar para a produção de determinados artistas do ponto de vista da produção, de quem faz, desse ponto de vista do artista, não tanto como historiadora”, destaca, relembrando que foi essa visão que fez essa conversa acontecer.
A vivência no curso de Arquitetura e Urbanismo auxiliou no desenvolvimento da análise, relacionando o urbanismo com a arte. A graduação foi tão importante enquanto aprendizado que a professora não viu a necessidade de entregar o trabalho final para ser arquiteta. “Finalmente, na Escola da Cidade, eu aprendi a ser a diferença. Por mais que eu não tenha tirado o diploma”, conta. Para ela, o amadurecimento artístico se deu nesse momento.
Com o sonho de ser mãe e realizar algumas conquistas, Ferraz escolheu fazer uma pausa na carreira de pesquisadora sem deixar de ser uma produtora cultural. Depois de oito anos, teve uma conversa determinante com o marido. “Eu quero voltar a estudar” foi a frase que anunciou o próximo passo de sua vida acadêmica: fazer doutorado. A sensação de que o seu lugar era na universidade resultou no rearranjo da vida. O trabalho passou a ser remoto e o tempo livre passou a ser para pesquisa.
'Eu entendi que meu lugar de artista era como pesquisadora'
A decisão de se voltar para o seu lado pesquisadora foi acompanhada por outra: ser estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Ao desenvolver o projeto, buscou por alguém que pudesse orientá-la dentro de suas pesquisas “à margem”. “Tive o privilégio de ser orientanda da professora Ana [Maria de Moraes] Belluzzo. Eu fui a penúltima orientanda dela, a última de doutorado. Foram quatro anos quase exclusivos. Então foi uma relação muito incrível, somos amigas até hoje, eu devo muito a Ana. Falo que aprendi com ela como é possível ter uma disciplina acadêmica, uma seriedade com o seu estudo e, ao mesmo tempo, ter afeto”, relembra.
Ferraz trouxe para a sua pesquisa uma alfinetada na arte e na arquitetura, pensando na arte urbana, nos diálogos com seu trabalho e suas questões enquanto artista. Assim, selecionou Rubens Mano, Ana Maria Tavares, Carmela Gross e Regina Silveira. Porém, o escopo precisou ser reduzido e a professora escolheu analisar Mano e seu trabalho.
No mês da qualificação, Ferraz prestou concurso para ser professora de Escultura na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ao finalizar a tese “Sobre atravessamentos. Arte, cidade e a produção do espaço a partir da obra de Rubens Mano”, a professora retornou às salas de aula com o desafio de ministrar uma disciplina que não havia cursado.
“Então você entra pra dar aula de alguma coisa que você nunca teve a experiência de ter uma metodologia aplicada no seu aprendizado. Era uma coisa do zero. Quando entrei na UFU, eu tive que inventar uma metodologia, inventar exercícios, a partir da minha experiência como artista. A minha metodologia de ensino é a minha experiência prática”, destaca entre risadas, ressaltando que há uma renovação constante no que ensina.
A característica de aluna crítica e insatisfeita permaneceu na professora, que se deparou com outras como ela. “Em um momento, começaram a aparecer alguns questionamentos das minhas alunas. ‘Por que a escultura só tem homem? Por que o que a gente lê só tem homens? Não têm mulheres na escultura?’ E eu falei ‘vocês têm razão, estão certíssimas’”.
Ainda naquele momento, no segundo semestre de 2018, Ferraz começou a procurar por escultoras. Nesse ínterim, relembrou que deixou as artistas na sua pesquisa de doutorado. “Tese boa é aquela que a gente deixa um monte de coisas ainda por fazer”.
Grupo de Estudos 'O Espaço Delas'
Os textos e os livros demonstram muitas artistas plásticas e fotógrafas, mas poucas escultoras, o que trouxe o questionamento de onde estavam essas mulheres. Assim, em 2019, Ferraz criou um grupo de estudos para pesquisar mulheres na arte.
“Sabe aquele texto que a gente deixa no desktop do computador? Fica anos ali? Eu achei a oportunidade de ler no primeiro encontro do grupo”. Era um texto da Rosalyn Deutsche, chamado “Agorafobia”. Durante a leitura, a professora descobriu que o tema principal era arte-feminismo. A partir daí, Ferraz sentiu que era o momento de estudar mulheres.
“Eu falei: ‘agora, tudo o que a gente está estudando aqui, a gente vai fazer o recorte de gênero’. Então vamos entender: ‘Será que esse campo da escultura é um campo masculino? Essa coisa da força, da escala, do fazer. Por que elas não aparecem? Será que elas têm pouco recurso?’ Eu queria entender, colocando essas variáveis, qual era a questão”, conta.
Palestras desenvolvidas durante a pandemia reuniram diversas pesquisadoras. (Imagem: Acervo pessoal)
Dessa forma, o “Espaço Delas", grupo com um nome de duplo sentido (enquanto espaço dentro da arte e enquanto profissão) surgiu com uma rede de pesquisadores de outras universidades que se detém ao tema. Com a pandemia de covid-19, as reuniões virtuais permitiram a participação de diversas pessoas para além da UFU. Atualmente, há pesquisadoras no Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.
A ideia, entretanto, não era se limitar a apenas estudar e debater, mas também produzir. “Participamos de um evento lá em São Paulo, na Luz, e foi muito legal. “Onde estão as mulheres na arte na cidade?” foi uma proposta da Lívia Amaral, que é uma artista que eu conheço faz tempo, também lá em São Paulo, e que convidou a gente. Ela fez uma palestra, depois ela convidou a gente para participar, a gente fez alguns cartazes feministas que tinham a ver com o espaço delas. E esses cartazes estão rodando o mundo, já foram expostos na Espanha, em Santa Catarina, em vários lugares”, exemplifica a professora ao citar uma das frentes do grupo.
Cartazes feitos pelo grupo para o evento 'Onde estão as mulheres na arte e na cidade?', no bairro da Luz, em São Paulo, em 2021. (Imagem: Acervo pessoal)
A outra frente se detém à pesquisa. Para abrir as frestas da história das artistas brasileiras e entender o motivo de poucas serem citadas ou conhecidas. Para Ferraz, a limitação do conhecimento dessas mulheres no Brasil também trazia questionamentos.
Pesquisa em parceria com o MAM
As limitações da pandemia fizeram com que a professora buscasse por acervos on-line. Ferraz encontrou os Panoramas da Arte Brasileira. Essa exposição, organizada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), surgiu em 1969 visando premiar anualmente produções nacionais que eram expostas no museu. Elas eram adquiridas para reconstruir o acervo.
O primeiro ciclo, publicado entre 1969 e 1993, era dividido por linguagens. Assim, a professora observou as artistas que participaram das exposições de escultura para analisar quem eram elas, se continuaram na carreira, quais os critérios de seleção, qual o estilo de escultura mais premiada entre outras. Ferraz também se propôs a analisar onde tinham mais mulheres.
Diante disso, a professora publicou um artigo produzido por conta própria. "Uma das minhas surpresas é que, proporcionalmente, tinha mais artistas na escultura do que na pintura. Eu falei ‘opa, calma. Por quê?’”. Isso porque há livros reconhecidos de história da arte em que não há mulheres citadas enquanto escultoras.
Da mesma forma, a pesquisa fez surgir mais uma ferida do machismo no mundo da arte: a tradição. Quando são citados em salas de aula, selecionados para exposições ou analisados em pesquisas, os homens ainda são considerados mais artistas. “Como a pintura era o gênero mais consagrado, então eram homens brancos. Por incrível que pareça, tinha bem menos espaço, têm pouquíssimas artistas premiadas no Panorama de pintura”, relata Ferraz.
“São dois aspectos diferentes: uma era a questão interna do próprio meio artístico de, tradicionalmente, consagrar homens brancos, e a linguagem que mais se consagra é a pintura; e a outra questão não necessariamente é uma questão do sistema da arte, mas uma questão social, econômica, do ponto de vista das funções generificadas", completa. Pensando na época em que os Panoramas começaram, as mulheres não tinham uma grande participação social-econômica, o que interferia na proposta de viver como artista.
Após a publicação, em 2020, a vontade de continuar pesquisando sobre os Panoramas fez com que Ferraz mandasse um projeto para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). O hibridismo da arte contemporânea fez com que as edições passassem a ser divididas por curadoria, o que instigou a pesquisadora. Apesar de desacreditada, o grupo foi contemplado com o financiamento, com validade de três anos.
No final de 2021, a bibliotecária Léia, que trabalha no MAM, informou sobre o edital do laboratório de pesquisa sobre o acervo. “Aí eu fiz um recorte, fiz um projeto derivado do meu projeto da Fapemig só para estudar as premiadas com o trabalho tridimensional, mas aí eu peguei todos os ciclos”, descreve.
O intuito era pesquisar o acervo, os Panoramas e as mulheres. “Foi uma coincidência incrível”. O desenvolvimento do trabalho contou com a visitação ao acervo e com reuniões junto ao grupo de pesquisas de gênero na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
A maioria dos projetos é mais relacionada a objetos cotidianos. E isso também fez parte da discussão apresentada na pesquisa. Assim, a professora acredita que a pesquisa não para, já que outras questões geram possíveis problemas que resultarão em mais etapas de estudo. Por exemplo, Ferraz relata que muitas deixaram de produzir. “Quais os entraves? Isso é algo que me interessa”.
Os próximos passos do Grupo são produções que divulguem os trabalhos dessas artistas mapeadas em cada uma das pesquisas. O “Espaço Delas” pretende continuar estudando as mulheres artistas brasileiras e produzindo peças que quebrem o tradicional e continuem o processo do que foi feito.
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Palavras-chave: Artes Mulheres Divulgação Científica
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