Publicado em 07/08/2023 às 10:42 - Atualizado em 22/08/2023 às 16:38
De acordo com dados de 2020 do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), no mundo, uma a cada 36 crianças possuem o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Somente no Brasil, estima-se que existam dois milhões de pessoas com autismo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O avanço nos métodos de educação e diagnóstico, atrelado às tecnologias, levou a uma explosão de diagnósticos do transtorno no país, com um crescimento de 280% entre 2017 e 2021 dentro da comunidade escolar.
Com o objetivo de auxiliar essas crianças, surgiu o programa de software Michelzinho, jogo de interações desenvolvido pelo pesquisador Adilmar Dantas em sua tese de doutorado em Computação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), que está disponível na Vitrine Tecnológica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Dantas, que já trabalhava com aplicações educativas, explica que o projeto surgiu durante pesquisas e revisões de literatura em que se percebeu uma defasagem em políticas públicas e sociais para pessoas com autismo, principalmente crianças.
O que é o TEA?
De acordo com o psicólogo José Alberto dos Santos, um dos profissionais que testou o jogo durante a sua construção, o autismo não é uma doença, mas sim um transtorno. “Para ser uma doença, eu preciso de uma causa específica. O autismo entra no espectro dos transtornos por ser multifatorial. Por isso, para o diagnóstico, precisamos pensar em alguns comportamentos que podem indicar que uma pessoa se encaixa neste espectro”, destaca.
Pessoas, e principalmente crianças em fase inicial, podem ter dificuldade em manter contato visual, interagir com outras pessoas, manter uma atenção compartilhada com aqueles que estão ao redor, deficiência ou atraso na linguagem e ainda dificuldades para reconhecer sentimentos e expressões faciais. Mas o que todos esses sinais têm em comum é a possibilidade do mau funcionamento do neurônio espelho, responsável pelas reações e imitações dos seres humanos.
“São diversos os fatores que interferem no desenvolvimento de uma criança. Por isso falamos que existe um espectro do autismo, exatamente por conter nuances que devem ser observadas caso a caso, sendo as características dos pais e o quanto a criança é estimulada fatores que influenciam”, completa o psicólogo, que ainda acrescenta que um diagnóstico de TEA precisa de uma avaliação multidisciplinar de psicólogos, neurologistas, pediatras e psiquiatras.
Michelzinho
Foi observando uma dessas características, a dificuldade de reconhecer e expressar emoções corretamente, que Dantas criou o Michelzinho. O software utiliza a inteligência artificial associada ao Sistema de Comunicação de Intercâmbio de Fotos (SCIF) para desenvolver essa habilidade junto ao público autista. “O aplicativo surgiu com essa proposta de ensinar esse público e auxiliar os pais ou cuidadores em uma possível identificação do transtorno, além de acompanhar a evolução dessas pessoas”, destaca.
“Esse público tem uma certa afinidade e facilidade de se identificar com a tecnologia e com o processo de gamificação crescente. Buscamos na psicologia tradicional, que já possui métodos para ensinar essa identificação, algo que demandasse um esforço menor tanto do paciente quanto do terapeuta”, explica o pesquisador. Ele também destaca que o jogo digitalizou esse processo para desafiar e engajar mais as crianças.
O game está disponível para smartphones com Android e como site, recentemente o jogo também foi indicado pelo Ministério da Educação como aplicativo de desenvolvimento da aprendizagem na plataforma Saber+. Ele foi construído tanto para ensinar os usuários a reconhecerem emoções quanto para expressá-las. “Dentro do aplicativo tem joguinhos que vão ajudá-lo a reconhecer emoções, por meio de figuras e identificação de fotografias; ou ele terá um rosto de um personagem em que ele vai moldando, como se fosse um desenho, e escolhendo as partes do rosto: ‘olho da alegria, boca da tristeza, entre outros’ e assim ele consegue montar uma emoção”.
Quanto à parte de expressar, o pesquisador explica que, com a inteligência artificial, ele criou mais de 70 fases interativas que possuem desafios com o personagem. “Por exemplo, ‘ajude o Michel a coletar todas as estrelas fazendo a emoção alegria’. Assim, utilizando a câmera do celular, o game vai fazer esse reconhecimento facial do rosto do usuário o qual ele tem que imitar o rosto do personagem que ele está vendo”, descreve.
Melhor amigo
O nome Michelzinho é uma homenagem ao melhor amigo de infância de Adilmar Dantas. “Quando eu criei o jogo, a ideia era que ele fosse o amigo virtual das emoções do TEA, então eu coloquei o nome do meu melhor amigo que se chama Michel. Dessa forma, queremos passar essa ideia de parceria e amizade”, conta. E a ideia deu tão certo que o Michelzinho hoje está perto de chegar a dois milhões de partidas jogadas.
Ainda, foi possível comprovar que a computação auxilia no tratamento do transtorno. “Acredito que pode ajudar muito, principalmente dentro desse contexto de gamificação e de aparelhos que tenham touchscreen que as crianças possam interagir. O papel é limitado, por isso, quando eu falo de um aplicativo, eu tenho muito mais opções para trabalhar e desenvolver essas crianças porque ele é lúdico, colorido e chama a atenção”, explica José Alberto dos Santos.
Cientificamente, é comprovado que pessoas com TEA aprendem melhor imitando aquilo que estão vendo. Os testes realizados pela equipe mostraram que o jogo Michelzinho auxiliou em até 88% o desenvolvimento de autistas que o utilizaram. Entretanto, Santos alerta que somente o game não é capaz de desenvolver as funcionalidades desse público. “Ele é um importante jogo para ajudar as pessoas com TEA a reconhecerem as emoções, mas somente ele não é suficiente para instigar o ensino. Se ele aparecer como uma extensão do plano pedagógico e terapêutico que é trabalhado e desenvolvido com as crianças, ele pode ser um ótimo aliado para desenvolvê-las para questões sociais”, destaca.
Identificação aos sinais
O Michelzinho é um aplicativo voltado ao público autista, mas extensivo ao público em geral. De acordo com Adilmar Dantas, o game está em constante atualização para aprimorar as habilidades da inteligência artificial e, com isso, quando pessoas sem o TEA jogam, eles treinam a tecnologia. “Você pode jogar por diversão e auxiliar a deixar o programa mais inteligente. Por exemplo, com as atualizações já feitas, atualmente, o Michelzinho pode passar algumas dicas: se eu estou expressando a alegria de forma errônea, ele pode me pedir para fazer sorrisos, mexer algum músculo ou fazer algum tipo de expressão”.
Ao mesmo passo, o pesquisador, que já desenvolveu outros projetos voltados para a educação com inteligência artificial, bem como o psicólogo que usou o jogo com pessoas com TEA, destacam que o Michelzinho pode ser um pontapé inicial para a busca por um profissional que auxilie no diagnóstico do espectro. Isso porque, se o usuário, de qualquer idade, mas sem o conhecimento sobre o transtorno, estiver jogando e apresentar muitos erros, isso pode ser sinal de algum distúrbio.
Entretanto, Santos alerta que, apesar do diagnóstico de autismo ter aumentado, não significa que todos que apresentam algumas dificuldade ou sintoma relacionado ao TEA tenham o transtorno. “Precisamos pensar de forma muito criteriosa sobre esse diagnóstico. Quando falamos de autismo tardio, por exemplo, é preciso avaliar se esse adulto tem uma deficiência porque ele não desenvolveu aquela habilidade por causa do autismo ou porque ele não aprendeu. O fato de eu não ter uma habilidade não quer dizer que eu seja autista: eu posso apenas não ter desenvolvido essa competência de identificar emoções”, explica.
Vitrine Tecnológica
O game Michelzinho está disponível como programa de software na Vitrine Tecnológica da Fapemig, espaço destinado à divulgação de projetos inovadores que possuem pedidos de proteção intelectual no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). Os trabalhos da Vitrine ficam disponíveis para proporcionar acesso ao conhecimento científico e tecnológico das Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) de Minas Gerais, além de viabilizar parcerias e transferências de tecnologias.
*Texto originalmene publicado no portal da Fapemig.
Palavras-chave: Michelzinho Computação inteligência artificial Divulgação Científica autismo Software UFU
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